O BAILE DA SAUDADE

Era uma bela manhã de domingo. O Sol das nove horas já aquecia a pele e a aragem do Sul balançava a copa das árvores derrubando folhas e alguns frutos do imenso pé de fícus.

Na feirinha do bairro o alarido produzido pelos pregões dos vendedores contribuía para quebrar a monotonia da Quadra Central da cidade, tão costumeira, nos finais de semana. Gente de todas as direções da Rosa dos Ventos acorria para o pátio da “Feira do Padre” trazendo suas hortaliças, verduras, frutas e legumes cultivados no cinturão verde ao redor da área urbana.

Criadores de peixes também expunham, em imensas tinas de plástico, tilápias vivas e de bom tamanho a preços convidativos. Eu mesmo costumava comprá-las para ensaiar um sashimizinho safado, de vez em quando.

A freguesia, lenta e distraída, desfilava, entre fileiras de barracas, regateando aqui e ali. Aos poucos ia enchendo sacolas com os produtos fresquinhos e baratos que lhes serviriam de alimento pela semana adentro.

Respirando o espírito de Paz, que emanava desse manso cenário dominical de Sobradinho, passei pelo jornaleiro e comprei um noticiário do dia. Sentei-me no meu banco preferido, bem em baixo de uma árvore frondosa que me oferecia sua sombra amiga como se num abraço de boas vindas.

Mal comecei a ler as manchetes da primeira página percebi que uma outra pessoa havia sentado no mesmo banco e, também, abrira um exemplar do mesmo periódico que eu havia comprado.

Olhando de soslaio, pude perceber que meu vizinho procurava alguma coisa na página dedicada à programação cultural e aos lugares de lazer que pululam pelo Plano Piloto. Era um homem, assim como eu, avançando nos anos, com uma cabeleira branca atestando minhas conjecturas. Fiz-me de desentendido e retomei à minha leitura, ainda na pagina inicial.

Não demorou dois ou três minutos e o homem dirigiu-se a mim:

-- Desculpe! Não desejo incomodá-lo! Mas, como o senhor está na mesma faixa de idade que eu, tomo a liberdade de lhe perguntar se é seu costume freqüentar o “Baile da Saudade”?

-- Não! Respondi-lhe. Na verdade, nunca fui a um baile desse tipo! Nunca tive minha atenção voltada para essa forma de entretenimento! Prefiro o “Clube da Bossa-Nova”! Gosto de música!

-- O Senhor não sabe dançar? É Isso?

-- Não, meu amigo! Sei dançar sim e na minha juventude era um tipo que se pode chamar de “pé-de-valsa”! Não perdia um baile no clube da vizinhança! Costumava, até mesmo, freqüentar um grupo de amigos especialistas em furar festas! Éramos conhecidos como “O Grupo dos Penetras”! Aquilo era um barato! E como dávamos sorte com as garotas!

-- Mas, então o Senhor deve ter alguma razão para não ir ao “Baile da Saudade”?

-- Acertou em cheio! Tenho uma grande razão, sim senhor! O fato é que sou um sujeito que não sente saudade! Aliás, para dizer a verdade, nunca tive esse sentimento de que as pessoas tanto se lamuriam. Não sei o que é saudade, nunca tive e não tenho saudade de ninguém, de nada e nem de qualquer acontecimento ou situação!

-- Mas que incrível! Nem dos amigos que se foram, familiares, momentos bons, farras, mulheres? Nada?

-- Nada mesmo! Sou completamente infenso a esse sentimento e me sinto muito feliz por isso! Assim não sofro e nem fico me lamentando como a maioria das pessoas que conheço faz! Portanto, o “Baile da Saudade” não é chamariz para mim! Prefiro deixar isso para as pessoas que se identifiquem com ela!

Ademais, o sentimento de saudade está ligado a pessoas, situações, coisas ou fenômenos que consideramos terem sido “boas ou más”, “agradáveis ou desagradáveis”, ou seja, são as pessoas que qualificam ou desqualificam tais passagens e a saudade é mais propriamente, um sentimento de perda, de impotência, de ausência de posse... A saudade é filha do nosso modo de ver a vida e o mundo!...

Quando o homem for capaz de se livrar do “dualismo” e das suas conseqüências, entenderá que não existe nada mau ou bom e que tudo faz parte dos instrumentos que o Universo colocou diante de nós para que possamos avançar pelos caminhos da eternidade...

-- Não só estou atento ao que está me dizendo como também estou curioso por saber qual a motivação que gerou no senhor essa espécie de “vacina” contra a saudade, sentimento que maltrata todo mundo e invade, até mesmo, as nossas orações, música, literatura, pensamentos e quase tudo a nossa volta!

-- Bem! Acho que essa “vacina” a que o senhor se refere tem a ver com uma “perspectiva de vida”.

-- Perspectiva!

-- Sim! Perspectiva de vida!

-- Pode explicar melhor?

-- Cheguei à conclusão de que a saudade é um sentimento que assola o ser humano e que, geralmente, está associado à tristeza, à lamentação, a uma idéia de perda, de impotência, de incapacidade. Mas, em que ponto vamos encontrar a origem da saudade?

Se prestarmos bem atenção a esse processo vamos ver que o ponto de partida está num lugar fictício que resolvemos chamar de “passado”.

O homem está acostumado a um “conceito de tempo” que, segundo Stephen Hawking, não existe no Universo; é algo intrinsecamente pertencente à humanidade planetária.

Afinal, qual é a definição de passado? No dicionário, entre outras, com sentido similar, temos: “ocorrido”, “findo”. Ora, se é uma coisa “finda”, quer dizer que já não está no presente! Simplesmente acabou!

-- Não estou entendendo, ainda, o seu raciocínio! Gostaria de ouvir mais a respeito!

-- Pois bem, meu amigo! Se aceitarmos a proposição de Stephen Hawking em seu livro, “Uma Breve História do Tempo”, chegaremos à conclusão de que o que chamamos de passado e o que chamamos de futuro são ilações cuja tendência é serem desfeitas à medida que o homem for adentrando às diversas nuances, do próprio presente, que eu prefiro chamar de Eterno Agora!

-- Como assim?

-- Imaginemos que o passado e o futuro sejam irreais e que, apenas, sejam uma produção a mais das nossas convenções, nascida da “nossa mente concreta e finita”.

-- Mas! E a Ciência, e a História, e a Proto-Historia e a Pré-História? Todas essas variantes do conhecimento humano não estão se referindo ao passado da humanidade para que possamos, com as experiências vividas, arquitetar, no presente, o futuro?

-- Na conceituação humana isso é factível! Mas, como estamos falando em termos universais, para muito além dos limites das esferas terrestres, temos que admitir que só haja mesmo um componente que poderemos identificar como “O Eterno Agora”.

-- Agora Eterno? Continue, por favor! Nunca havia ouvido falar em coisa semelhante. É fantástico! Inverossímil!

-- Então! Imaginemos, ainda, sobre a possibilidade de que estejamos vivendo em um campo energético que se subdivide em várias dimensões e que algumas sejam concretas para os sentidos humanos e outras ainda não. Imaginemos, ainda, que tudo o que chamamos de passado, presente e futuro sejam, todos, fenômenos concomitantes que estejam sendo processados (ao mesmo tempo) no Eterno Agora!

-- Ainda não consegui me situar nessa teoria!

-- Não é teoria minha! O que lhe digo é baseado em deduções! É resultado da síntese de uma quantidade bastante considerável de dados a que tive acesso durante uma vida de buscas... Existem muitas fontes tratando do mesmo assunto por vias diferentes e com palavreado diverso, mas que convergem para o mesmo ponto! O tempo do homem é um tempo relacionado à sua parte concreta. Mas, o homem não é essa parte concreta! A parte concreta do homem é o invólucro temporário do seu “Eu Verdadeiro” e esse, tal como o Cristo nos ensinou, é “O Reino Em Nós”! Não foi isso mesmo o que ele disse: “O Reino está em vós”? De Saint-Germain também temos: “O homem não é o que pensa ser”... E Shakespeare: “Ser ou não ser, eis a questão”...

-- Sim! As Escrituras dizem isso! Mas!...

-- Então, apliquemos os ensinamentos de Jesus e façamos, com eles, uma nova leitura sobre isso: Se o Reino está em nós, se cada um de nós é “Templo em que vive O Divino” e se o Divino é O Eterno, não existe nem passado, nem presente e nem o futuro concreto; somente o “Eterno Agora” onde tudo acontece, ao mesmo tempo e em todos os lugares dos planos e subplanos da existência...

-- É um assunto para ser pensado. Todavia, não será nada fácil assimilar a idéia!

-- Bem, meu amigo! Não é minha intenção induzi-lo a mudar ou rever seus esquemas mentais ou seus sistemas de crenças. No entanto, posso lhe assegurar que mais cedo ou mais tarde, irá ser levado a pensar de maneira similar... Como foi o senhor mesmo que mostrou desejo em saber a razão pela qual não sinto saudade, fui franco! Não sinto saudade e, por isso, não sofro!

Com essa perspectiva de vida entendo que devo compreender que o que chamamos de “dualismo” é uma característica unicista do próprio Tao e que, as duas forças a que fomos incentivados a perceber como antagônicas são partes do “Mesmo Todo”. Logo, luz e trevas não podem existir isoladamente. Ambas fazem parte da mesma Fonte, pois nada existe fora dela; tudo está nela e ela é o Todo de onde tudo provém e para aonde tudo volta...

Assim, como qualificar ou desqualificar os fenômenos? Tudo faz parte de um maravilhoso jogo no qual, somos utilizados como instrumentos do próprio Criador para externar e vivenciar a Sua própria glória...

Assim disse o Mestre: “EU E MEU IRMÃO SOMOS UM”. Com esse ensinamento, quis dizer que cada Ser é um fragmento do Pai e que todos juntos “SOMOS TODOS UM”...

-- O homem agradeceu a atenção que lhe dediquei e retrucou, agradecendo:

-- Muito obrigado “meu irmão”! Acho que vou deixar de freqüentar o Baile da Saudade! Não irei mais lá! Tratarei de aprender a me desvencilhar da saudade e desse dualismo de que falou...

Em seguida, dando-me um toque no ombro, fechou seu jornal, levantou-se e seguiu seu destino. Espero que, como eu, não venha a sentir saudade daquele momento...