RAIO DE LUZ

O gosto da miséria, trazia-o na boca. De mãe prostituta do cais do porto, nascera numa manhã de julho. Sem pai, sem parentes. A genitora fugira da roça para acertar a vida na cidade. Nunca acertou. Morreu de tuberculose, deixando o filho com seis anos. Foi então que ganhou uma caixa de engraxate. Iniciou a carreira. Uma “tia” o amparou. Moravam numa maloca, no Morro Santa Teresa. Logo, foi iniciado no sexo pela tia, tornando-se seu marido.

Recusou-se a conceber um filho para a miséria. Já bastava ele. De inteligência curta, não estudou. O vício abriu-lhe as portas. Entrou fácil. Primeiro com cola. Foi seguindo na trilha do que aparecesse. Traficou um pouco.

A Praça da Alfândega serviu-lhe de morada. Ali passava as horas, os dias, os anos, a vida. A mulher morrera. Restaram os colegas, ali mesmo, na praça, onde às vezes também dormia.

Não se queixava, não tinha planos. Esperava o fim, sem lamúrias, sem pressa. Nunca furtou. Não, senhor. Era temente a um ser que acreditava ser dono de seu destino. Só por isto.

Alguns foram para a cadeia, outros morreram, novos vieram. Trabalhavam de sol a sol. Um dia, foram merecedores de um espaço próprio, cadeiras bonitas. Mas com o tempo até elas estavam em péssimo estado. Assim como ele. O que ganhava, bebia, cheirava, injetava-se. Nada de chamar a atenção, nada que o impedisse de, ao raiar do sol, estar a postos, para mais um novo dia.

Mas naquela noite, talvez tenha exagerado na dose. Além dos delírios costumeiros, demorou mais do que o normal para retomar a lucidez. A vontade mesmo era de não voltar. De perder a razão, de não ter mais pensamento, de sumir, diluir-se. Energia retornando à energia maior.  Reagiu.

A manhã de julho escura. Talvez chovesse. Ficar em casa seria melhor. Além do mais, a dor insistente voltara a incomodar. Sem dinheiro para a droga seguinte, precisava trabalhar. Desceu o moro. Sentou-se no banco dos idosos e dormiu até a hora de descer do ônibus. Ia arrastando os pés. Os colegas o olharam, mas ninguém falou. Organizou-se. Tirou o pó da cadeira. Aguardou, em silêncio. O primeiro freguês não demoraria.     

Foi então que, como num passe de mágica, ela chegou, vestida de sol. Voltaram-se para vê-la. Turma de invejosos. Enquanto os demais lustravam sapatos velhos, de onde o chulé transpassava, Jonatas curvava-se para a beldade, segurava-lhe a mão estendida, conduzindo-a para a cadeira. A luz que a acompanhava fazia dourar tudo à volta. As velhas cadeiras, os toldos, as caixas com o material, e até os rostos dos colegas.

A moça sentou-se e cruzou as pernas, bem de vagar, mas bem de vagar mesmo. Os olhos do velho tiveram visão do céu. Foram segundos de eternidade. A ausência da peça íntima a culpada. Respirou fundo. Sempre foi respeitador. Pegou a graxa, abriu a lata com cuidado, olhando para a moça. As mãos caíram no colo. O sorriso e o gesto o imobilizaram. A boca carnuda, com batom vermelho, os olhos com o verde da praça, misturavam-se.

Quando lhe estendeu as mãos, passou a língua sobre os lábios molhados, sentiu ressuscitar o sexo. Com uma estucada, a lata da graxa saltou. Foi tamborilando pelos paralelepípedos uma marcha de vitória.


Ergueu-se. Ajeitou o avental, envergonhado. A moça insistindo. A mini-saia subindo. Nem que fosse o último ato, não poderia resistir. Puxou-a e aproximou a boca. O perfume de flores, a sinfonia dos pássaros, o ventou balançando as flores – e a música – sinos badalando, badalando, num crescente ensurdecedor.

Ao verem a cena, os demais engraxates correram, enquanto o homem pedia socorro, tentando se desvencilhar de Jonatas. O velho agarrava o freguês, procurando-lhe a boca.

Ao separarem os dois, Jonatas caiu, morto, com um sorriso.





 
MADAGLOR DE OLIVEIRA
Enviado por MADAGLOR DE OLIVEIRA em 05/06/2013
Reeditado em 21/06/2013
Código do texto: T4327199
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