Recomeços

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Os olhos pesam. Em luta ferrenha, as pálpebras tentam manter abertos olhos que, teimosamente, fecham a cortina visual, extirpando a beleza da luz. A oscilação entre o negrume e o resplendor é o mesclar da realidade que se busca esquecer. Meus olhos pesam toneladas... E a vida continua lá fora. Adormeci.

A ladainha do cantarolar de um grilo me desperta. São duas horas da madrugada. Da varanda, observo a silenciosa rua. O amontoado de fios macula a paisagem natural; percebo a pressa urbana estampada em ruídos e buzinas que me confundem o inconsciente. Ouço passadas recentes. Presencio discussões calorosas entre motoristas apressados. O tempo urge na cidade, motivando o surgimento de cadenciados espasmos catalisadores do tempo.

Descobri de onde partia o apelo sonoro do bichinho que me atormentava. Levantei-me. Matei o grilo.

Ouço passos, agora reais. O vigilante noturno, sexagenário, acena-me. Traduzi o aceno como “estou aqui!”. Retribuo a saudação e esboço um sorriso imperceptível. Foi inútil. Após o cumprimento, o vigilante tomou o chapéu pela aba. Baixou a cabeça e seguiu, numa vigília intermitente, realizada desde que me mudara para o interior. Às vezes, quando retornava da faculdade, trocávamos não mais que duas palavras – eram expressões meramente formais que não implicavam nenhum vínculo.

Ele sumiu após dobrar à esquerda, apitando qual o grilo falecido. Que alívio saber de onde provinha o som do apito, estando impossibilitado de alcançar o “grileiro”. O som ia se distanciando de mim e o velho, certamente, progredia, na solidão da noite, com silvos de sobrevivência, num sinal de medo estampado no som melancólico da melodia monotonal. Ele, pelo menos, ainda estava vivo...

Numa visão panorâmica – e apresada –, percorro todo o meu quarto, sem me ater a nada, num primeiro momento. De repente, todavia, detenho-me quando observo o lugar onde estivera deitado, antes de me dirigir até a janela e trocar cumprimentos com a sentinela. Há um corpo espalhado pela cama, que não me espera, certamente. Ouço suave roncar e movimentos abdominais, denunciando que há vida.

Olho a parede branca da varanda e a persistência da retina projeta, para meu espanto, a imagem recente do velho cabisbaixo, deambulando na solidão da noite. Há composição de imagens e a figura do velho vai se recompondo, recompondo... Diante de mim vejo surgir a imagem do meu pai. A catarse das feições propicia-me espetáculo cênico. Havia perfeição e fluidez na transformação. As cortinas se descortinaram e uma sucessão de acontecimentos, até então aparentemente esquecidos, prendeu-me à tela.

Encontro-me numa festa de natal. Meu pai está fardado e recebe um presente. Minha mãe, sorridente, externa a felicidade de ter sido sorteada. Ela usava uma calça boca de sino horrível e as imagens pareciam amareladas, denunciando que o filme a que assistia não era de fatos atuais. Naquele exato estalo de anacronismo, percebi-me, ainda criança, ao lado da minha mãe: loiro, olho esquerdo fechado pela sensibilidade ao Sol; cabelos ondulados e doirados, barrigudo – meus cabelos doirados era atrativo circense para o vento que soprava, insistentemente.

As imagens prosseguem. Um hiato, uma pausa. Um rito.

Vejo meu pai numa sucessão de momentos temporalmente iguais, sentado e sozinho. Eu o observo, através da tela em branco e preto, segurando um terço. Não há nenhum placar. Não há tempo para se cronometrar. Havia uma ampulheta. Havia o marcador das horas, sempre fixado no mesmo instante: 18h. Loucura? Repetição? Sinto-me numa história em quadrinhos com superposição de imagens. O ator se repete. A hora também. Mudam os trajes superpostos, magistralmente. Por ininterruptos quatorze anos, meu pai rezou o terço da hora dos anjos.

Outro salto. O velho vigilante retorna. Outro aceno. Outros apitos... Ele longe de mim, no chão frio da noite que parece fotografia; eu, no segundo andar, arrogante e cansado. Meus olhos ainda pesam toneladas!

Um carro passa em disparada, apressado. Mesmo nas pequenas cidades a correria impera.

Outro flash. Meu pai, outrora atleta e altivo, agora não corre mais. Alguém o carrega pela mão como a ensinar-lhe os primeiros passos. As feições denunciam as marcas do tempo. Eu me tranquilizo. Ele hesita em cada novo passo, princípio de queda. Senta com dificuldade. Quando motivado, fala palavras monossilábicas, e se esconde da vida e de todos, refugiado numa rede no quarto dos fundos da casa que construiu. A rede se tornara o alento do corpo cansado pelos excessos da infância sofrida, juventude de luta e vida adulta impulsionada pela correria (necessária?) da existência.

Vejo meu pai caído ao chão, sozinho. Os joelhos ensanguentados dão provas irrefutáveis da fragilidade humana estampada num corpo franzino e por demais relutante – viver é luta renhida, mas o sofrimento nos faz refletir sobre a necessidade ou não de se permanecer sofrendo. Homem bom, honesto, bom pai... Entregou a vida e a sorte aos desígnios de Deus.

As imagens na parede se tornam confusas. Estou chorando. Meu pai, paciente, deita-me ao colo e me faz dormir. O medo da escuridão e de ficar sozinho na minha cama o obriga a me ninar, apesar dos meus 15 anos.

Outro enfeixamento de imagens. O início da doença. O AVC. A hemodiálise... Tudo passa rapidamente e aos turbilhões. Estou distante de casa. Queria os afagos do meu pai. O carinho e a força necessários para continuar. Egoísmo? Talvez. É que os filhos também nunca sentem que os pais envelhecem. Se somos as eternas criancinhas dos nossos progenitores, eles sempre serão nossas muralhas e referenciais... Não o consigo imaginar fragilizado e, mesmo agora, diante dos acontecimentos, meu personagem chamado filho precisa fortalecer-se diante da fraqueza do personagem pai.

Um grito. Minha filha acorda, sobressaltada. Passado o susto, nova tela se abre na parede, estampando a inscrição: futuro. Tive ímpetos de desligar o controle remoto, parando as imagens. Em verdade, embora soubesse o final de todos aqueles enredos, não via razão, naquele momento, para continuar. Por infelicidade, não havia controle remoto: apenas o tempo, cobrando um desfecho. Tentei desvencilhar-me dos prognósticos, mas não há nenhum domínio do homem quando confrontado pela materialidade e finitude da alma.

Fechei os olhos e, apesar dos arrepios do medo, pensei nos reencontros e recomeços.

Crato-CE, 07 de agosto de 2008.

02h22min

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Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 05/06/2013
Código do texto: T4325886
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