PÓ DA ESTRELA
À medida que se aproxima do alto, Jaqueline aperta mais a caixa. Tem os dedos embranquecidos pelo esforço. Mantém um sorriso, ainda que o coração bata em ritmo acelerado. Abano, embora saiba que não me vê. Finalmente, livrar-se-á da incômoda tarefa. Para, extasiada com a beleza. Paris à noite é só brilho. Piscam as luzes lá embaixo, piscam as estrelas no céu. Abre a caixa e vai derramando o conteúdo. São poeiras da Estrela que vão dançando ao som do Hino ao Amor, que só eu vejo, que só eu escuto. Depois disto, finalmente fecharei os olhos, darei adeus ao mundo. Minhas cinzas sobre Paris é meu último desejo. Pronto. Agora, nada mais me prende aqui. Vejo um homem ao lado dela. Quem será? Preciso descobrir. A santinha. E a promessa? Não tenho tempo de descobrir. Aidée puxa-me pela mão.
- Dona Aimée esteve novamente no Cartório.
- Não acredito. Outro testamento?
- É o décimo. Quando chegou, fui logo brincando: a senhora veio fazer mais um testamento? Já desistiu do anterior? Como se não tivesse escutado, largou o leque sobre o balcão, pediu um copo com água – gelada, não, ordenou – e cadeira. Tudo pausadamente. Sentou-se, tomou a água, abriu a pasta rosa, trocou os óculos e, só então, disse que, agora sim, seria o último. Puxou o manuscrito e entregou-me com as duas mãos, como se fosse um tesouro.
- E tinha alguma nova esquisitice?
- Sim. Além de ser cremada, quer que as cinzas sejam jogadas sobre Paris, do alto da Torre Eiffel. Disse que fez a prima jurar sobre a imagem da Virgem que cumprirá seu último desejo.
- Com a fortuna que vai receber, será fácil. Poderá até ir espalhando partículas das cinzas pelo planeta, se Aimée assim desejar.
- Jaqueline é pessoa de palavra. Sei que irá atender.
- Mas Aimée está bem, com saúde, não está?
- É. A Estrela ainda brilha, apesar dos seus noventa e três anos.
- Por que mesmo que é chamada assim?
- Participou, quando jovem, de um filme, escondida dos pais. Descoberta, foi um escândalo na família. Internaram-na num convento. As freiras não conseguiram aguentá-la. Era vaidosa e incentivava as demais. As freirinhas viravam a cabeça. Cada vez que a madre ia admoestá-la, gritava: sou uma estrela, quero brilhar, o mundo me chama.
Jaqueline não teve filhos. O marido morreu jovem. Prometeu, no leito de morte, jamais ser tocada por outro. E assim fez. Quando Aimée precisou, logo após a morte da gêmea Aidée, foi morar com ela. A prima era esquisita. As maluquices que fazia tornaram-na famosa. A cidade a conhecia. Estrela brilhou até o último suspiro. Havia a promessa. Devota de Maria, jurara. Mas tinha esperança de que, na hora final, mudasse de ideia. No entanto, isto não aconteceu. O Dr. Flávio chamou-a para a leitura do testamento. Somente aí, ficou ciente de que o recebimento da riqueza estava condicionado. E havia um fiscal.
Sentou-se ao lado da mulher sem pedir licença. O mau humor estampado no rosto. Por que o gerente não podia ir? Havia programado um cruzeiro, com a namorada. E todos sabiam. Foi de propósito. Turma de invejosos. Não querem ver ninguém feliz. Não, presidente, disseram os acionistas, este caso só o senhor pode resolver. E quem diz que Solange compreendeu? Ingrata. Até já estava começando a gostar dela. Colocou o tapa-olho, os fones nos ouvidos. Fechou os olhos. Pretensão de dormir. E dormiu. Solange entrou. Sedutora, sorriu e foi se aconchegando. Estou perdoado, alegrou-se. Abraçando-a, grudou-lhe um beijo. Sonoro tapa o acordou. Não soube onde estava. Descobriu os olhos, arrancou os fones e olhou para a mulher. Num segundo, entendeu.
- Mil desculpas, senhora. Não tive intenção. Sonhava.
O rosto da mulher foi se transformando. Da zanga à gargalhada. Sílvio passou mão no rosto, onde o vergão de quatro dedos se destacava. Ela deixou de gargalhar, para as desculpas. Ele pediu champanhe, ela o acompanhou. Apresentações, alegria, Jaqueline esquecendo a promessa. A Cidade Luz aparecendo. O marido, envolvido pelo borbulhar da bebida, parecia sorrir, do outro mundo. Sentiu-se perdoada.
À medida que se aproxima do alto, Jaqueline aperta mais a caixa. Tem os dedos embranquecidos pelo esforço. Mantém um sorriso, ainda que o coração bata em ritmo acelerado. Abano, embora saiba que não me vê. Finalmente, livrar-se-á da incômoda tarefa. Para, extasiada com a beleza. Paris à noite é só brilho. Piscam as luzes lá embaixo, piscam as estrelas no céu. Abre a caixa e vai derramando o conteúdo. São poeiras da Estrela que vão dançando ao som do Hino ao Amor, que só eu vejo, que só eu escuto. Depois disto, finalmente fecharei os olhos, darei adeus ao mundo. Minhas cinzas sobre Paris é meu último desejo. Pronto. Agora, nada mais me prende aqui. Vejo um homem ao lado dela. Quem será? Preciso descobrir. A santinha. E a promessa? Não tenho tempo de descobrir. Aidée puxa-me pela mão.
- Dona Aimée esteve novamente no Cartório.
- Não acredito. Outro testamento?
- É o décimo. Quando chegou, fui logo brincando: a senhora veio fazer mais um testamento? Já desistiu do anterior? Como se não tivesse escutado, largou o leque sobre o balcão, pediu um copo com água – gelada, não, ordenou – e cadeira. Tudo pausadamente. Sentou-se, tomou a água, abriu a pasta rosa, trocou os óculos e, só então, disse que, agora sim, seria o último. Puxou o manuscrito e entregou-me com as duas mãos, como se fosse um tesouro.
- E tinha alguma nova esquisitice?
- Sim. Além de ser cremada, quer que as cinzas sejam jogadas sobre Paris, do alto da Torre Eiffel. Disse que fez a prima jurar sobre a imagem da Virgem que cumprirá seu último desejo.
- Com a fortuna que vai receber, será fácil. Poderá até ir espalhando partículas das cinzas pelo planeta, se Aimée assim desejar.
- Jaqueline é pessoa de palavra. Sei que irá atender.
- Mas Aimée está bem, com saúde, não está?
- É. A Estrela ainda brilha, apesar dos seus noventa e três anos.
- Por que mesmo que é chamada assim?
- Participou, quando jovem, de um filme, escondida dos pais. Descoberta, foi um escândalo na família. Internaram-na num convento. As freiras não conseguiram aguentá-la. Era vaidosa e incentivava as demais. As freirinhas viravam a cabeça. Cada vez que a madre ia admoestá-la, gritava: sou uma estrela, quero brilhar, o mundo me chama.
Jaqueline não teve filhos. O marido morreu jovem. Prometeu, no leito de morte, jamais ser tocada por outro. E assim fez. Quando Aimée precisou, logo após a morte da gêmea Aidée, foi morar com ela. A prima era esquisita. As maluquices que fazia tornaram-na famosa. A cidade a conhecia. Estrela brilhou até o último suspiro. Havia a promessa. Devota de Maria, jurara. Mas tinha esperança de que, na hora final, mudasse de ideia. No entanto, isto não aconteceu. O Dr. Flávio chamou-a para a leitura do testamento. Somente aí, ficou ciente de que o recebimento da riqueza estava condicionado. E havia um fiscal.
Sentou-se ao lado da mulher sem pedir licença. O mau humor estampado no rosto. Por que o gerente não podia ir? Havia programado um cruzeiro, com a namorada. E todos sabiam. Foi de propósito. Turma de invejosos. Não querem ver ninguém feliz. Não, presidente, disseram os acionistas, este caso só o senhor pode resolver. E quem diz que Solange compreendeu? Ingrata. Até já estava começando a gostar dela. Colocou o tapa-olho, os fones nos ouvidos. Fechou os olhos. Pretensão de dormir. E dormiu. Solange entrou. Sedutora, sorriu e foi se aconchegando. Estou perdoado, alegrou-se. Abraçando-a, grudou-lhe um beijo. Sonoro tapa o acordou. Não soube onde estava. Descobriu os olhos, arrancou os fones e olhou para a mulher. Num segundo, entendeu.
- Mil desculpas, senhora. Não tive intenção. Sonhava.
O rosto da mulher foi se transformando. Da zanga à gargalhada. Sílvio passou mão no rosto, onde o vergão de quatro dedos se destacava. Ela deixou de gargalhar, para as desculpas. Ele pediu champanhe, ela o acompanhou. Apresentações, alegria, Jaqueline esquecendo a promessa. A Cidade Luz aparecendo. O marido, envolvido pelo borbulhar da bebida, parecia sorrir, do outro mundo. Sentiu-se perdoada.