Conduta

Desde os sete anos de idade eu já desejava algo diferente daquilo que buscava a maioria dos seres: queria ser motorista de caminhão. Não me importavam as críticas dos familiares e nem dos que me desestimulavam dizendo que isto não dá dinheiro e que é profissão de aventureiro ou para aqueles que não gostam de estudar. Quanto ao estudo, não tinham razão, pois que era uma de minhas paixões prediletas; tanto que, mesmo de cidade em cidade tive vontade e persistência para concretizar minha formatura e receber o diploma. Posso hoje mostrá-lo e calar a boca daqueles que duvidaram da minha competência. Viajar para mim representa a maior de todas as alegrias. Quando comecei não havia as modernas estradas repletas da tecnologia de hoje; os carros não eram tão eficientes. Mas era sumamente saboroso desfilar pelas rodovias daquela época. Hoje, não sei se aceitaria uma oferta de emprego para dirigir caminhões. Não teria essa coragem.

Não há coisa pior do que um pai impor a seu filho a profissão que ele exerce. Impor é mesmo a expressão correta a ser utilizada, pois é o que acontece em muitas famílias. Todos possuímos um sonho e uma vocação e deixei que meu filho seguisse a dele; mas não se deu o mesmo com o meu neto. Não me sinto culpado por isso, a escolha foi sua exclusivamente. Não nego que algumas viagens ao meu lado devem tê-lo encantado, levando-o a esta decisão na vida.

Comecei dessa forma o texto na intensão de relatar minha última viagem com Wellington, meu querido neto. Além de representar para ele uma agradável companhia orientava-o em alguns trechos do caminho que eu conhecia como a palma da minha mão. As horas mais agradáveis dentro da rotina de um caminhoneiro costumam ser aquelas que ele passa na companhia de seus colegas de profissão, quando recuperam o cansaço e o estresse das horas que parecem intermináveis ao controle de um volante. Deixei há muito para trás o hábito de ingerir bebidas alcoólicas, senão raramente, na minha própria casa ou em ocasiões muito especiais. Então, quando precisávamos viajar à noite, depois de um encontro de Wellington com seus amigos favoritos, era eu quem dirigia enquanto ele se recuperava de uns copos a mais de cerveja.

Num desses encontros conheci Vanderlei, amigo inseparável de Wellington. Estávamos acomodados em nossas mesas dentro do imenso bar, na divisa entre Paraná e São Paulo. Do lado de fora, em ambos os lados da rua, os caminhões se enfileiravam. Não havia somente o nosso bar, mas posso assegurar que igual não tinha outro nas redondezas. Sempre que as entregas de Wellington o conduziam para o sul do país era esta rota que ele escolhia a fim de passar por aquele ponto de encontro e rever os amigos. Todos faziam o mesmo e era certo uns e outros coincidirem os seus horários para que fosse garantida uma amistosa reunião. Neste dia estava Vanderlei e mais três camaradas do grupo. Havíamos chegado ao fim da tarde e, após um banho e um breve lanche na hospedaria descemos para o bar. Com o cair da noite rareava o movimento na autoestrada e os poucos veículos que faziam o contorno para este lado vinham ter no nosso estabelecimento. Todas as cadeiras e mesas estavam tomadas.

A casa dividia-se em dois ambientes. Num deles havia um palco com uma pista de dança. Quando não havia apresentações como agora, viam-se jovens sentados em mesas em animadas conversas, devorando hambúrgueres e batatas fritas que eram vendidos numa lanchonete adaptada para esses dias sem eventos musicais. A outra ponta era onde nos reuníamos. No bar propriamente dito, tirando as mesas de sinuca enfileiradas e algumas máquinas caça-níqueis ao fundo, todo o restante do local era de espaço para se sentar e beber cerveja. Homens de todos os cantos do país ali se encontravam. Um vozerio enorme, mas aconchegante, uma música suave ao fundo – geralmente uma canção sertaneja ou alguma orquestra – davam, à cena, um toque familiar.

Nossa conversa ia amena e agradável. Vanderlei era um sujeito grosseiro de aparência, mas não passava disso. Após conhecê-lo e manter com ele alguns minutos de prosa esta impressão desaparecia instantaneamente e acaba-se constatando uma simpatia incomum e uma espontaneidade cativante; nos sentíamos totalmente à vontade no trato com ele. À medida que as horas iam passando e garrafas de cerveja iam sendo substituídas por outras, cheias e atraentemente geladas, minha preocupação ia aumentando. Não exatamente pelo avançado da hora, mas pelo teor da conversa, levada para outros caminhos e a descontração causada pelo efeito do álcool. Falavam de mulheres e, logicamente, de sexo. Não há nada demais em manter este tipo de conversa onde só há homens. Só que, o que pretendiam fazer deixou-me um tanto preocupado e descontente.

Era mesmo um local para homens e o assunto não poderia ser outro. Expressavam-se abertamente. Riam às gargalhadas e eu notara em meu neto certa reserva nos comentários e nas respostas às insinuações dos colegas. Foi quando, diante de uma pergunta de um dos companheiros, percebi que corara. Seu olhar encontrou o meu e eu disfarcei, olhando para a outra extremidade, em direção ao grupo de jovens, fingindo que não ouvira a frase. O amigo convidara Wellington para visitar a boate da região, famosa entre os caminhoneiros. Neste momento pedi licença para ir ao banheiro, mas minha intenção era deixá-los mais à vontade. Levantei-me e, por detrás do grupo, ocultei-me, protegido pela parede do corredor. Ali fiquei alguns minutos, na escuta do que diziam.

– Não tinha um momento mais oportuno para me dirigir esse convite; não vê que estou acompanhado? – disse Wellington, aproveitando a minha ausência.

– Já sei; o vovô querido não pode saber dos lugares que o netinho frequenta!

– Sou casado, seu idiota! – Wellington reagiu com irritação.

– Fala como se fosse o único casado do grupo. Então não sabe o que está perdendo. Não faz ideia do monumento de mulher que vou conhecer hoje à noite; é de tirar um homem do sério. Posso apresentar, se quiser. Vai se encantar por ela.

Não sei qual foi a reação de Wellington a esta proposta, pois não lhes via as fisionomias; somente suas vozes chegavam até mim. Contudo, surpreendi-me quando Vanderlei entrou na conversa e da maneira com que o fez, pois era um dos mais animados com a ideia de estenderem a noite em um bordel.

– Não ouviu o rapaz dizer que é casado? Ele não vai a lugar nenhum; não é um galinha como você e ama a esposa. Não é porque estamos alguns dias fora de casa que vamos perder tempo e dinheiro indo atrás de vadias.

Foi tal a inflexão e seriedade nas palavras de Vanderlei que todos o olharam com ar de respeito por ser o mais velho do grupo. Dali para frente não se falou mais no assunto. Eu continuei entre eles num papo animado e sadio. Fomos dali direto para o nosso quarto de hotel e creio que todos devem ter feito o mesmo.

Até hoje não sei se devo acreditar no comportamento do meu neto em suas viagens, mas não me esqueço de Vanderlei. Algo me diz que ele captou a minha estratégia e agiu sabendo que eu os escutava o tempo todo.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 04/06/2013
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