Sonhos desfeitos
“Não há nada mais forte do que um pensamento cujo momento chegou”.
O sol ainda nem raiara e Pedrinho já saltava da rede. Dispensou a lamparina e tateou no escuro até a porta da cozinha - que dava para o quintal - puxou a tramela da porta e olhou o céu ainda estrelado. O Cruzeiro do Sul piscava suavemente enquanto a estrela d'alva, cintilante, descia no nascente. A brisa soprou o seu rosto com o doce aroma da cana-de-açúcar; a lembrança da mãe veio com o sussurro do vento. O engenho era o pedacinho de céu do qual sua mãe muito falava (e agora ele já sabia) - a casa-grande, a moagem da cana, os meninos provando a garapa, a cachaça sendo preparada...
Muitos anos se passaram. De menino, virou homem; precisava descobrir o mundo assim como descobrira o engenho. Esse mundão de Deus deve ser muito bonito, cheio de novidades e maravilhas como fora a casa-grande quando criança: muito que explorar, aprender e aproveitar. A cidade grande, a Capital que Zequinha Germano sempre falava. O Sul... Sim, o Sul que o esperava, cheio de sonhos e fantasias. O Sul que corre dinheiro farto, mulheres bonitas... mais bonitas do que a negra Judite.
Uma estrela cadente correu no firmamento. Ele correu para o terreiro, pegou um punhado de terra, amarrou na camisa e deu um nó antes que a estrela caísse. Isso daria sorte. Fez um pedido.
De repente, a lembrança da mãe lhe trouxe saudades. Dois fios de lágrimas lhe escorreram dos olhos. Mais uma vez ia partir para o desconhecido, mais uma vez sem os conselhos da mãe. Mas o Sul deve ser muito bom; sim, é; o filho de um cortador de cana falou isso ano passado, quando veio a passeio. Roupas e sapatos novos, gastando dinheiro, bebendo cerveja...
Alegrou-se novamente. Olhou o horizonte. O sol vinha raiando. As galinhas já desciam do poleiro e os trabalhadores do engenho já estavam chegando. A hora de viajar era chegada. A cabeça rodou. A mãe caída ao chão, o médico, as pessoas falando... Tio Joaquim chegou e esses pensamentos foram embora. Sentiu um aperto no peito, quis chorar. Não há nada mais forte do que um pensamento cujo momento chegou.
Mulheres passavam às gaitadas no caminho do açude. O açude onde aprendera a nadar, a dar cangapés com os primos, a passar as mãos - por debaixo da água - nas pernas das cabrochas...
Despediu-se de tia Marina, do avô, dos primos e de mais algumas pessoas que vieram ver sua partida. Amigos e parentes lhe desejavam boa sorte. Recomendações foram feitas por todos.
A rodoviária. O ônibus que lhe trouxera para um novo mundo que se abrira quando criança; o mesmo que lhe levará para um mundo completamente diferente de tudo que vira antes. Uma pontada de alegria lhe espetara o peito. A cidade grande. O Sul.
O gigante de aço soprava fumaça preta, e um apito ensurdecedor anunciava a partida. Tio Joaquim acenava com seu chapéu que ia ficando cada vez mais distante; as árvores corriam apressadamente. Seus olhos pesaram e ele dormiu. Dormiu com o sonho de quem busca o desconhecido, a aventura, a quimera.
Enfim, O Rio. Seus olhos buscam todos os lugares ao mesmo tempo. Carros, ônibus, pessoas passando apressadamente, correndo, gritando. Ninguém se cumprimentava, nem ao menos dava um "bom-dia". Gente diferente, mal-educada! Meninos de rua descalços, sem camisas, pedindo, furtando, correndo; meninos com vidros na mão, cheirando alguma coisa. Maneiras diferentes de brincar (ou de viver). Prédios enormes substituíam as mangueiras, as bananeiras, o canavial. O aroma da cana-de-açúcar fora trocado pelo cheiro de gases e fumaça que saiam dos carros. Uma sensação de medo do desconhecido palpitou no seu peito. Lembrou de casa.
Um amigo o esperava. Um abraço fraterno, enfim. Em sua nova morada as novidades foram sendo contadas aos poucos. O engenho, o açude, as meninas... O cansaço bateu, cochilou.
Sua rede fora trocada pela cama. Dormira mal. Logo começaria seu novo trabalho; sua tão desejada vida nova o aguardava com o novo nascer do sol, que não mais era anunciado pelo canto dos passarinhos, mas pelo barulho de carros e pessoas; sol este que não seria fácil de ver ao nascer, escondido atrás dos prédios e construções.
O dia fora duro e puxado. Se tivesse estudado mais talvez pegasse um trabalho melhor. "Estude, Pedrinho. Você não há de querer ficar burro velho como seu tio Joaquim", dizia tia Marina. A velha tinha razão. Onde estariam seus sonhos e fantasias do Rio de Janeiro, as maravilhas do Sul que tanto ouvira falar? Cadê o dinheiro farto, o sonho dourado?
Tudo era diferente. Os hábitos, a comida, a música... Até sua fala era diferente! A alegria ia sumindo a passos largos, sem olhar para trás.
Meses se passaram e continuava na mesma. A saudade batia a cada fim de tarde e cada vez mais forte. Os banhos de açude, a negra Judite, as histórias do Zequinha Germano... Quanta saudade!
O Sul não era tão fácil. Por que tantos deixam o Norte? A ilusão, a maldita ilusão de comprar felicidade! Isso não se compra. Podemos ser felizes com nossos pequenos sonhos sob o céu estrelado do engenho, nos braços de uma negra Judite qualquer, respirando a brisa que traz o aroma da cana-de-açúcar, ouvindo o canto dos galos-de-campina...
Era lá, no engenho, na casa-grande, que estava a felicidade; nos campos, solto, vivo, alegre e livre feito o caipora fazendo suas danações. Não carecia viver noutro lugar para ser feliz. Triste ilusão! O ônibus haveria de voltar. E ele haveria de voltar.
Adormeceu e sonhou. Tio Joaquim de braços abertos, as gaitadas das mulheres no caminho do açude, os moleques dando cangapés, a estrela d'alva no nascente, a negra Judite, seu pedacinho de céu...
Outra vez feliz.