AINDA É TEMPO...

O seu convite me chegou pela tecnologia moderna: "Fazemos questão da sua presença na festa tal , dia tal, endereço tal."-essa atual chamada SMS via celular, que quando minha aniversariante nasceu, lá nos idos de hum mil novecentos e vinte e três, sequer se cogitava a possibilidade de um dia existir.

"Existir", eis a nossa perene questão,e enquanto eu aqui esboçava meu conto real, a expressar meu sentimento mais íntimo, o tal verbo ilustrou meus instrumentos de expressão linguística, este que aqui me valho para narrar a sensação que me permeou na sua festa de aniversário de noventa anos: a nossa tão efêmera e relativa existência.

Tudo ali estava existencialmente impecável: O local, a guarnição, a festa, o buffet, os convidados, o sax, a flauta doce, as músicas de época, o vinho, o champanhe, as flores, a decoração do todo, e claro , a aniversariante. Parecia um longa.

Vestia um taier de delicada renda "guipir" rosa queimado, muito bem ajustado num " a biêt" chique, cabelo impecavelmente cortado a um toque clássico- moderno, algo chanel, sapatilha de verniz preto com detalhe dourado na ponta, meias de seda fumê claro, e como adornos, no pescoço fino expunha um colar de pequeninas pérolas biwa, nas orelhas discretos pontos de brilhantes e no pulso esquerdo um relógio em ouro cravejado com pequeníssimos diamantes, moda do início do século passado, que ganhara no noivado a presente do seu futuro marido.

O perfume vinha do seu verbo existir.

Eu, então, me aproximei emocionada para cumprimentá-la pela conquista da vida e percebi que me olhava com certo esforço de reconhecimento facial.

Esboçou-me um sorriso custoso, colocou a mão direita no seu andador ao lado para se apoiar e como se quisesse me contar mais alguma coisa do tudo que já me relatara pela vida, apertou minha mão com certa resignação.

Pela mania de escritor talvez, passei a observá-la com mais cuidado durante a cerimônia.

Os presentes que chegavam eram colocados logo na entrada e eu me perguntei se realmente ela tomaria contato com tudo que ganhara de bonito.

Ali senti na alma o "quantum" do tempo desprestigia a materialidade da nossa vã existência tão quântica...

Pausa para a fotografia de família: e uma multidão de pessoas, fruto de várias gerações se aglomerou a seu lado. Ela apenas olhava assustada para o entorno, talvez impressionada com tantas pessoas ao seu redor.

Nessas horas é que percebemos o fruto das relações humanas pela vida que nem sempre, a tempo, temos como tomar consciência para sentir a alegria pela grande e mais importante realização pessoal.

Alguém, por ocasião da projeção das fotografias de retrospectiva de vida, assim exclamou:

" Pessoal , essa é minha mãe , vestida de noiva, minutos antes do seu casamento".

Descrevo que era linda, indiscutivelmente sósia de Rita Hayworth!

Imediatamente passei a observá-la com atenção na sua reação diante da sua vida recontada que nos mostravam naquela tela.

Vez ou outra parecia reconhecer um filho, um neto, um bisneto ou o esposo. Ao seu vestido de noiva arregalou as pálpebras para depois ceder ao seu sonolento fechamento.

Ali soube que fora desportista...fazia trilhas pelas florestas.

Num dado momento, entre a projeção e a História, o sax solava Roberto Carlos "Eu tenho tanto pra te falar mas com palavras não sei dizer...".

Ela então despertou e parecia nos cantarolar com os olhos a letra daquela canção para todos os convidados...

Na hora do bolo não a poupamos da clássica canção, então, cantamos os parabéns:"..muitas felicidades, muitos anos de vida..."

Parei para prestar mais atenção na letra do "parabéns a você" e ali eu percebi como a cantamos no "automático" o "muitos anos de vida"...embora poucos minutos possam significar uma vida inteira.

A maior surpresa: finda a canção ela soprou vigorosamente a velinha.

Só ali percebi o quantum do "ainda é tempo"...

Nota do Autor:

Dedico este texto à minha protagonista real , a quem desejo toda a felicidade do mundo, porque ela me ensinou que sempre é tempo.