O Imponderável
Desistiu das férias para organizar os papéis. Evitou pensar na praia, nos amigos que lá estariam e na Joana só porque achou imperioso organizar a barafunda de notas, contos, poemas, fotografias, recortes e documentos dispersos em caixas depositadas na garagem. Vamos que, apesar da saúde que tinha, morria amanhã? Se isso acontecesse seria fácil alguém colocar ordem no espólio? Se ele não o fizesse – pensou – talvez ninguém amasse o suficiente a sua obra para o fazer por si e… arrepiou-se imaginando a sua memória delida, a obra ignorada e o inexorável limbo do esquecimento a cair sobre a sua vida. Posso morrer – pensou – mas quero ficar nos livros, quero que me não esqueçam. Vamos, então, ao trabalho. No fim do dia tinha conseguido arrumar, cronologicamente, a maior parte da correspondência da última década mas a tarefa seria cansativa, concluiu. Pensava em tudo isto quando sentiu, no silêncio do compartimento, um restolhar de folhas, um macio raspar no interior de uma das caixas. Parou para escutar melhor e definir a localização do som. Depois, levou a caixa de recortes de Imprensa para a luz, abriu-a, afastou algumas tiras e papel roído e pôde, enfim, vê-los, aos ratinhos, já com pelo, a olharem-no em desafio. E agora? O que farás de nós para preservar o teu lugar na história? Parecia que lhe perguntavam. Agora? Vou para a praia gozar o tempo que me resta de férias, decidiu.