*
Um querido amigo em um comentário, pediu que eu escrevesse algo com a palavra “barrento”.Para você, Malta, com carinho, este conto da vida real
*
Meu pai, durante quase noventa anos, conservou uma amizade, apesar de entreveros, desavenças, contendas, quase que constantes. Os dois moravam em uma pequena cidade do interior, ambos em fazendas. Japão e Turquia. Peguei uma carona nessa amizade e comecei a prestar atenção nos frutos que ela me oferecia, aos sete, oito anos, época na qual, com a ajuda de meu pai, entendi que pequenos conflitos que não marcam a alma, são necessários para o certificado do Saber Viver. Esse entendimento vinha com fatos ocorridos entre eles que meu pai chamava “Parábolas do Vicente”.
O senhor Vicente não percebia o quanto suas provocações, dissidências, palavras de baixo calão (às vezes ditas) e inimizade (temporária) ajudar-me- iam futuramente. Entretanto, o mérito dessa percepção não veio dele, mas com as interpretações do meu pai.
Nossa casa sempre esteve cheia de crianças, porém eu era a rainha, como filha única da filha do meu pai.** Os outros eram primos. Três que moravam com a gente e mais oito que, quase diariamente, apareciam para ver os avós e serem paparicados por eles. Sem contar os pobres, que não eram de rua (na época a rua era apenas para quem tinha casas) , que meu pai chamava quando iam passando.
- filho, aonde vai?
- vou vê se meu pai ganhou algum dinheiro hoje limpano o terreno de dona Eulália, pramode a gente tê do qui cumê hoje.
- espera um pouco; , e entrava, pegava em sua carteira alguma cédula e entregava para o menino e perguntava:
- não quer brincar um pouquinho só? É o tempo que você ia levar para ver seu pai.
E aí a garotada, por diversos motivos entravam, sujos ou limpos, ricos ou pobres, para brincarmos juntos. Os meninos com os jogos de triângulo, bola de gude, arraia (ou papagaio), trocando figurinhas, mais recebendo de nós do que propriamente trocando. As meninas pulando macaco (que mais tarde virou em amarelinha) corda, vestindo e desvestindo bonecas, fazendo comidinha. Desde aquele tempo as mulheres “trabalhavam” e os meninos reclamavam:
- vocês não têm mais o que fazer?
O senhor Vicente entrava, gritando porta adentro: Joãozinho! Mas que barulho é esse aqui? Ah já sei, seus outros filhos chegaram... Olhava-nos brincando no quintal e dizia; - mas que ambiente clarificado!
Assim, nossos dias passavam tranqüilos, com hora de acordar, comer, estudar, brincar e dormir, nesta ordem.
Quando o senhor Vicente e meu pai discutiam (meu pai quase sempre calado) e o senhor Vicente gritando:
- fala alguma coisa, homem, senão a gente não chega a um acordo e esse ambiente vai ficar barrento. Meu pai retrucava com algo, educada e calmamente e o amigo falava ainda mais alto, o sangue no rosto cor-de-rosa:
- vê bem, se tu não te defendes, o ambiente vai é ficar barrento!
- Fica não Vicente, fica não.
- Fica sim e nossa amizade, ó, vai pro alto
- Ainda bem que vai para o alto, pior seria se fosse para baixo
E tudo ficava bem. Voltava a ficar clarificado.
Certa vez, tinha chovido muito e estávamos, eu e mais três primos na porta de casa. Após o passeio, havia um desnível de terra, que com a chuva virava barro amarelo e mole. Pisávamos na parte alta, rente ao passeio e colocávamos nossos barcos de papel. Ficávamos os vendo descerem, rápidos, pois a rua era em declive, e torcíamos para sermos o vencedor da corrida.
Uma vez, havia barro demais e, de repente, um dos primos, o mais novo, despencou escorregando e caiu dentro do “rio” como chamávamos a corredeira.
Entrei correndo e gritando: gente, corre aqui, Getúlio caiu no “rio” e está todo barrento
- Barrento!!?? O que está barrento? Gritou da copa o senhor Vicente correndopelo corredor.
E o pessoal ouvindo o “barrento”, augúrio de coisa que não está servindo mais, correu para ver. Juntos vinham meu pai, mãe, avó, tia e mais algumas crianças.
Calmamente, disse meu pai:
- Tem nada barrento não, gente, é só o Getulio que escorregou do barranco para largar o barco dele.
Tudo se acalmou e depois meu pai nos chamou a todos e discursou com o final, moral da estória.
- Crianças, nem tudo que parece um desastre, é. Aprendam a aceitar, caso seja, e a não brigar com o causador. Aprendam a ver primeiro, para depois distinguirem o clarificado do barrento, entenderam? ficou claro?
SIM! Gritamos todos
O senhor Vicente quis, depois disto, começar uma discussão, mas não conseguiu. Meu sábio “painho” clarificou a conversa, e ponto final.
** chamava meu avô de painho
Um querido amigo em um comentário, pediu que eu escrevesse algo com a palavra “barrento”.Para você, Malta, com carinho, este conto da vida real
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Meu pai, durante quase noventa anos, conservou uma amizade, apesar de entreveros, desavenças, contendas, quase que constantes. Os dois moravam em uma pequena cidade do interior, ambos em fazendas. Japão e Turquia. Peguei uma carona nessa amizade e comecei a prestar atenção nos frutos que ela me oferecia, aos sete, oito anos, época na qual, com a ajuda de meu pai, entendi que pequenos conflitos que não marcam a alma, são necessários para o certificado do Saber Viver. Esse entendimento vinha com fatos ocorridos entre eles que meu pai chamava “Parábolas do Vicente”.
O senhor Vicente não percebia o quanto suas provocações, dissidências, palavras de baixo calão (às vezes ditas) e inimizade (temporária) ajudar-me- iam futuramente. Entretanto, o mérito dessa percepção não veio dele, mas com as interpretações do meu pai.
Nossa casa sempre esteve cheia de crianças, porém eu era a rainha, como filha única da filha do meu pai.** Os outros eram primos. Três que moravam com a gente e mais oito que, quase diariamente, apareciam para ver os avós e serem paparicados por eles. Sem contar os pobres, que não eram de rua (na época a rua era apenas para quem tinha casas) , que meu pai chamava quando iam passando.
- filho, aonde vai?
- vou vê se meu pai ganhou algum dinheiro hoje limpano o terreno de dona Eulália, pramode a gente tê do qui cumê hoje.
- espera um pouco; , e entrava, pegava em sua carteira alguma cédula e entregava para o menino e perguntava:
- não quer brincar um pouquinho só? É o tempo que você ia levar para ver seu pai.
E aí a garotada, por diversos motivos entravam, sujos ou limpos, ricos ou pobres, para brincarmos juntos. Os meninos com os jogos de triângulo, bola de gude, arraia (ou papagaio), trocando figurinhas, mais recebendo de nós do que propriamente trocando. As meninas pulando macaco (que mais tarde virou em amarelinha) corda, vestindo e desvestindo bonecas, fazendo comidinha. Desde aquele tempo as mulheres “trabalhavam” e os meninos reclamavam:
- vocês não têm mais o que fazer?
O senhor Vicente entrava, gritando porta adentro: Joãozinho! Mas que barulho é esse aqui? Ah já sei, seus outros filhos chegaram... Olhava-nos brincando no quintal e dizia; - mas que ambiente clarificado!
Assim, nossos dias passavam tranqüilos, com hora de acordar, comer, estudar, brincar e dormir, nesta ordem.
Quando o senhor Vicente e meu pai discutiam (meu pai quase sempre calado) e o senhor Vicente gritando:
- fala alguma coisa, homem, senão a gente não chega a um acordo e esse ambiente vai ficar barrento. Meu pai retrucava com algo, educada e calmamente e o amigo falava ainda mais alto, o sangue no rosto cor-de-rosa:
- vê bem, se tu não te defendes, o ambiente vai é ficar barrento!
- Fica não Vicente, fica não.
- Fica sim e nossa amizade, ó, vai pro alto
- Ainda bem que vai para o alto, pior seria se fosse para baixo
E tudo ficava bem. Voltava a ficar clarificado.
Certa vez, tinha chovido muito e estávamos, eu e mais três primos na porta de casa. Após o passeio, havia um desnível de terra, que com a chuva virava barro amarelo e mole. Pisávamos na parte alta, rente ao passeio e colocávamos nossos barcos de papel. Ficávamos os vendo descerem, rápidos, pois a rua era em declive, e torcíamos para sermos o vencedor da corrida.
Uma vez, havia barro demais e, de repente, um dos primos, o mais novo, despencou escorregando e caiu dentro do “rio” como chamávamos a corredeira.
Entrei correndo e gritando: gente, corre aqui, Getúlio caiu no “rio” e está todo barrento
- Barrento!!?? O que está barrento? Gritou da copa o senhor Vicente correndopelo corredor.
E o pessoal ouvindo o “barrento”, augúrio de coisa que não está servindo mais, correu para ver. Juntos vinham meu pai, mãe, avó, tia e mais algumas crianças.
Calmamente, disse meu pai:
- Tem nada barrento não, gente, é só o Getulio que escorregou do barranco para largar o barco dele.
Tudo se acalmou e depois meu pai nos chamou a todos e discursou com o final, moral da estória.
- Crianças, nem tudo que parece um desastre, é. Aprendam a aceitar, caso seja, e a não brigar com o causador. Aprendam a ver primeiro, para depois distinguirem o clarificado do barrento, entenderam? ficou claro?
SIM! Gritamos todos
O senhor Vicente quis, depois disto, começar uma discussão, mas não conseguiu. Meu sábio “painho” clarificou a conversa, e ponto final.
** chamava meu avô de painho