CIÚME NO CEMITÉRIO (2 de 2)

Carlinha parou o carro debaixo das árvores do cemitério pontualmente à meia noite. Era um lugar antigo, com mausoléus enormes, sepulturas no chão e muitas sombras. Ela estacionou em um ponto afastado. Não podia se dar ao luxo do Tom desconfiar de qualquer coisa, caso tudo fosse verdade. Vestida de preto da cabeça aos pés, Carlinha ainda escondia os cabelos debaixo de um grande capuz. Se realmente existisse uma tia Cacilda e seu suposto velório, Carlinha teria que bater em retirada tão discretamente quanto chegou. Porém, como era quase sabido que nunca nascera qualquer tia Cacilda, Carlinha não precisaria se preocupar com seu disfarce ninja.

O cemitério, aquela hora da noite, estava vazio, como era de se esperar. Em nenhum lugar se ouvia um único barulhinho sequer. Carlinha atravessou os caminhos entre as sepulturas escutando o coração bater acelerado. Pé ante pé, ela se dirigiu até onde ficavam as capelas. Havia luz por lá. Alguém estava sendo velado. E Carlinha duvidou que fosse a tal tia Cacilda.

À medida que se aproximava começou a escutar algumas vozes. Em uma das capelas havia algumas pessoas. Não eram muitas. Escondida atrás de uma árvore, no escuro, Carlinha sacou da bolsa um binóculo. Posicionou ante os olhos, tentou ajustar o foco, mas o resultado não foi muito bom. Era um entra e sai da capela, ninguém parava em lugar algum. Um homem saiu para fumar, ficou um tempo parado olhando na direção de Carlinha. Ela nem se mexeu. Será que apesar de todo o seu disfarce estaria visível?

Esse mesmo homem jogou o cigarro fora, sem nunca desviar os olhos da direção dela. Carlinha ficou tensa, porém atrás da árvore era muito difícil que alguém pudesse enxergá-la. De repente ele se moveu. Deu um passo para frente como se pretendesse vir ao encontro dela.

Ela se abaixou, apavorada. Escondida atrás de algumas moitas, arrependeu-se pela primeira vez daquela aventura. Em nome do amor, estava à meia noite em um cemitério antigo, escondendo-se de um homem desconhecido que – Meu Deus – agora vinha para os seus lados.

O cara era grande e forte, mais ainda que o Tom. Aliás, do Tom não se via nem sinal. Aquela altura o cachorro estaria curtindo uma boa noite de sexo com a vadia da Maria, enquanto ela estava ali, correndo o risco de ser descoberta por alguém mal encarado que vinha na sua direção.

Os passos fortes do homem vinham pesadamente ao encontro de Carlinha, mal tapada pelos arbustos. Ela nem se movia ou respirava. Era possível escutar os pés do cara se arrastando pelo chão, cada vez mais próximo. Carlinha sentiu a bílis subir pela garganta quando ele parou a poucos centímetros dela, em frente à árvore. Sem pudores, o homem tirou o pau para fora das calças e mijou por uns bons dois minutos sem parar. Carlinha durante todo esse tempo não respirou ou se mexeu. Ele era mal encarado e, além disso, muito bem dotado. Não podia correr o risco de ser estuprada e, quem sabe, estripada por aquele brutamonte. Suportou com coragem todo o tempo em que o homem se aliviou a poucos passos dela. Depois de suspirar relaxado, ele voltou para a capela deixando Carlinha envolvida por um cheiro insuportável de xixi.

Ela saiu engatinhando para um arbusto livre de odores e lá se posicionou esperando algum movimento diferente. Começou a chegar mais gente. Era possível escutar o som de vozes, um pouco altas demais para um velório. Parecia que a qualquer momento se formaria um roda de pagode.

Alguns minutos se passaram e Carlinha começou a se enfurecer ainda mais. A única capela onde havia um corpo sendo velado era aquela, ou seja, se tia Cacilda estivesse morta, era lá que deveria estar. E, por conseqüência, seu amado sobrinho também. Dele, no entanto, nem sinal.

Naquele exato momento as luzes do farol de um carro se aproximaram justamente do lugar onde estava o carro da Carlinha. Ela entrou em pânico. De longe pôde reconhecer as rodas esportivas, o vermelho berrante e até o teto solar.

Era o carro do Tom. E, cruzes! Ele estava estacionando muito perto de onde estava parado o seu! Então era verdade? A tia Cacilda existira e havia morrido? Morrido de verdade?

A porta do carro se abriu lentamente, ao mesmo tempo em que Carlinha rastejava pelo chão até a sepultura mais próxima. Atrás da lápide não perdeu um só movimento, tensa e apavorada. Tom saiu e do lado do carona saltou uma senhora. Carlinha respirou aliviada. Deveria ser sua sogra. Porém, do banco de trás, saltou uma jovem. Sim, era uma mulher. Carlinha não podia ver o rosto, mas dava para perceber que era uma garota alta, loira (não era a Maria!) e com o andar bem elegante. Posicionou-se ao lado do Tom e… deram-se as mãos!

Carlinha se sentiu a última pessoa do mundo. Cachorro. Cretino. Ordinário. Então ele namorava duas ao mesmo tempo. Aquela lá deveria ser namorada há mais tempo, já que frequentava os eventos familiares. Agarrada na lápide, ela observou o trio passar apressadamente rumo à capela mortuária. A moça era mesmo bonita. Era nítida também a atenção que Tom dava a ela.

Em poucos minutos os três desapareceram das vistas de Carlinha. Ela não podia perdoá-lo. Aquela traição era demais. Fazia três meses que ambos estavam juntos e o infeliz escondia que tinha um relacionamento paralelo que talvez nem a outra desconfiasse. Estava bom demais para ser verdade, estrebuchou a garota, socando a lápide.

Ah, mas ele me paga.

Dando meia volta, Carlinha tomou o rumo do carro do Tom. No meio do caminho encontrou uma pedra afiada e ela seria o instrumento da sua terrível vingança. Começou a desforra esvaziando os quatro pneus. Não contente, passou a pedra de ponta a ponta várias vezes de um lado só, enquanto ria diabólica. Quando estava pronta para passar para o outro lado e repetir todo o procedimento, deu de cara com sua rival.

A garota a encarava com uma expressão de puro terror. A boca estava aberta, pronta para soltar o maior berro de todos. Carlinha não tinha suas feições definidas graças a sua roupa ninja, mas o susto também havia sido imenso. Tinha sido descoberta.

A outra deu meia volta e saiu correndo em direção à capela, ainda sem voz. Com as pernas bambas, Carlinha, por sua vez, voou até o carro e deu partida no exato momento em que finalmente a moça gritou com todas as suas forças:

- Socorro, uma alma penada!

Cantando pneu, Carlinha acelerou o mais que pôde, a tempo de ver pelo espelho retrovisor metade da capela saindo para acudir a outra. O coração dela só foi acalmar quando estacionou o carro na garagem do seu apartamento, com a absoluta certeza de que não fora seguida por metade do cemitério.

*

Carlinha levou um bom tempo para dormir. Imaginou que a qualquer momento a polícia bateria na porta da sua casa, acusando-lhe de ter depredado o carro do Tom. No final das contas, quando despertou da sua noite mal dormida estava arrependida do que havia feito. A raiva, no entanto, permanecia. O filho da puta tinha uma namorada muito mais bonita que ela. Imperdoável.

Era mais ou menos meio dia quando o Tom entrou em contato. Ao ver o número do telefone dele no celular, Carlinha estremeceu. Seria acusada e ameaçada? Mas quem era o Tom para lhe dizer qualquer coisa, um mentiroso de quinta categoria?

- Alô?

- Oi, meu bem. Sou eu.

- Oh, como você está? E sua tia… já foi enterrada a pobrezinha?

- Sim, agora há pouco.

Ele estava com voz de sono e Carlinha resistiu a sentir pena dele. Bem feito!

- Bem… - ela estava com medo de fazer a pergunta fatal. - Como foi?

- Puxa, você nem sonha o que aconteceu. Algo muito estranho se passou lá no cemitério.

- Jura? - o coração dela disparou. - Tipo o quê assim?

- Uma alma do outro mundo arranhou meu carro e esvaziou os pneus.

Carlinha se surpreendeu com a seriedade na voz de Tom. Será que ele…

- Meu primo precisou pegar algo no meu carro e …

- Primo? - então a garota havia trocado de sexo? - Seu primo foi com você?

- Sim, fomos todos juntos. E então uma coisa vestida de preto da cabeça aos pés, simplesmente monstruosa, estava depredando meu carro quando ele chegou. Ele ficou super apavorado e voltou correndo para a capela. Fomos atrás e não encontramos nem o rastro.

- Você quer dizer que uma alma penada estava destruindo com seu carro? Almas penadas podem fazer isso?

- Sei lá, acho que sim.

Lindo. Bem dotado. Muito burro.

- Mas que coisa hein, Tom? Então sua prima… quer dizer, primo, deve ter levado um baita susto.

- Ele praticamente perdeu a voz - Tom demonstrava estar muito impressionado com o fato.

- Incrível.

- E aí? Vamos curtir nosso cineminha hoje?

- Convida seu primo.

Patrícia da Fonseca
Enviado por Patrícia da Fonseca em 29/05/2013
Reeditado em 29/05/2013
Código do texto: T4316053
Classificação de conteúdo: seguro