Assim caminha a (des)humanidade - por Dalmir Lott.
(provável em qualquer ponto do planeta)
Basco tinha 44 anos de idade e morava nas ruas há dez. Os meses do inverno europeu eram muito duros. Quando a noite caía, trazia o frio peculiar dos ventos do norte. Por mais que tentasse aquecer-se junto aos cobertores que a caridade deu-lhe, era impossível remediar-se. Na madrugada enregelava-se. Beber álcool não adiantava mais.
No centro da cidade ouviu falar que as instalações dos bancos 24 Horas eram aquecidas com ar condicionado.
Pelas 10 horas da noite foi até um deles para conferir. Tinha a porta trancada pelo sistema de segurança. Observou as paredes de vidro blindadas, o interior e certificou-se que o sistema de ventilação realmente existia, além das várias máquinas de sacar dinheiro. Em alguns terminais o sorriso de um famoso ator de Hollywood. Ficou feliz por vê-lo na foto, pois lera numa revista do lixo que estivera muito doente, quase a ponto de morrer. Ele próprio, por vezes, admirava-se consigo: como não sucumbira até hoje vivendo daquela forma pelas ruas, sem alimentação, sem família, sem nada. Quase nada, pensava. Tinha ainda seu carrinho de supermercado que transportava suas parcas roupas. Além do ator sorridente, em outros terminais viu a foto de uma família feliz; casal e dois filhos se abraçando, contentes por seu crédito imobiliário aprovado por aquele banco.
Sentou-se no chão frio, cruzou os braços ao peito e aguardou que algum cliente abrisse a porta com seu cartão magnético. Em menos de 10 minutos um carro importado de cor prata estacionou. Saiu de dentro uma mulher extremamente bonita com saia de couro, botas texanas, casaco de pele. As mãos cheias de jóias e o cabelo que denunciava, pelo seu balanço, que havia sito tratado naquela tarde. O BMW parou próximo onde deixara o carrinho de supermercado. As cores do alumínio era parecidas com a lataria do automóvel. “A diferença que um tem motor, o outro não”, pensou Basco.
Sandra Morales de Valbón, administradora de empresas, 40 anos, solteira, sem filhos. Morava num apartamento de 170 metros quadrados em bairro de classe média. Recordou-se que iria precisar de dinheiro em espécie; iria a um evento onde estacionaria o carro e não aceitavam o pagamento em cartão, apesar de ser uma iniciativa da "high society".
Caminhou distraída em direção ao banco e assustou-se com Basco, quando não podia mais recuar. Estava a um metro quando o viu mexer-se. Parecia camuflado em meio ao cimento e a parede do mesmo tom cinza. Pensou em voltar, mas seguiu em frente. Passou o cartão na ranhura e a luz verde acendeu-se, abriu a porta e entrou. Fez a operação desejada e saiu.
Quando a porta abriu, um ar quente veio do interior da instalação animando as esperanças do mendigo; iria ter uma noite quentinha. Ao sair, Sandra não reparou que Basco empurrara um pequeno maço de papelão entre a porta de vidro impedindo-a de fechar. Permaneceu observando a bonita mulher entrar no carro e dar partida. O veículo sumiu na cidade adentro num ápice.
Foi ao carrinho de supermercado e retirou seu cobertor. Retornou e empurrou a porta de vidro. Entrou, sentiu um alívio imediato e uma felicidade extraordinária.
Tinha agora uma casa bastante iluminada, limpa, com sorrisos. E o melhor: uma família feliz que seguia-lhe a cada terminal que dirigisse os olhos. Captou o olhar daqueles que se abraçavam na foto digital e sentiu-se o filho pródigo e mais velho deles, mesmo que o pai tivesse a sua idade aproximada. Não importava. Era a oportunidade de sentir-se em família, aquela que nunca teve. Olhou em volta e cheirou o ambiente:Lavanda, apesar de não saber o nome, mas bastou-lhe a sensação.
Como toda casa de família há quartos, ele também quis o seu, resguardando sua privacidade e a dos pais e irmãos. Recolheu-se a um canto por detrás um painel publicitário de investimentos e sentou-se ao chão de mármore.
Dali ainda conseguia ver sua família em dois terminais. Continuavam a sorrir-lhe, felizes. Diziam “boa noite, meu filho”. Basco adormeceu.
Às seis da manhã foi acordado pelo toque e uma voz feminina. Seria sua mãe que o despertava?
- Senhor, não pode ficar aqui. Vamos abrir o banco. Se não sair, chamo a polícia – era a gerente do banco que o tocava com a ponta de uma caneta esferográfica.
Abriu os olhos e, calado, retirou-se do estabelecimento para mais um dia nas ruas de Madrid.
Solucionado o problema, a gerente, em sua mesa, sentou-se frente ao computador. Imprimiu um documento e passou a lê-lo:
"Ao Tribunal desta comarca
Assunto : Ordem de despejo por insuficiência de pagamentos das prestações de contrato.
Executada : Sandra Morales de Valbón".