CABEÇA DE CACHORRO

Tinha dias que ele ficava olhando o horizonte lá longe, um tempão. Cismava com o que haveria pra lá daquela fímbria que quase não se via. Imaginava grandiosidades e porcarias, tudo ao mesmo tempo. Besteira... Quando cansava da pasmaceira de olhar o longe que mal enxergava, tocava o rumo do pensamento pra outro canto. Sem querer, esfregava a palma de uma mão com o dedo indicador da outra e sentia a textura dos anos saltando. Calos duros, rachados alguns. De que adiantou tanto muque, tanta “bateção” de cabeça, tanto sofrimento? Mas não deixava marejar os olhos, pois disso já se cansara em tantos dias iguais a este, de pensar no distante. Então desviava o rumo do pensamento de novo, que era pra não embilolar o cucuruto com pensamento tão sem propósito.

Queria coisa melhor pra pensar. Coisa de maior importância e serventia do que ficar naquele terententém do dia inteiro e de todo dia, de toda hora e de um dia depois do outro, depois do outro e depois do outro. Muita coisa pra fazer, pra esquentar o juízo, pra responder sozinho, sem ninguém pra dividir prosa ou trabalho. E uma porção de gente pra dizer cadê isso, cadê aquilo, por que é que você não viu aquilo outro... Queria era coisa melhor pra pensar e pra se ocupar.

Mas então a caraminhola da cabeça já nem sabia que rumo tomar, pois vinha um gosto amargo subindo pela garganta e fazendo água azeda na boca. Saliva grossa que ele engolia, como fazia quase todo dia com tanto desaforo, tanta mal-querença e falta-de-jeito no trato, tamanha desavergonhice no procedimento, tanto fanatismo desmiolado, destramelice da boca, destemperança do juízo e falta de respeito, tudo coisa de engrossar saliva com gosto ruim. E era só desse tipo de coisa que um filho de ninguém tinha resolvido ocupar seu tempo, todo dia e toda hora.

Mas daí então passava a mão de calos e torturas na cabeça do cachorro que dormitava a seu lado. Fazia um carinho meio desajeitado, pois rudeza e carinho às vezes combinam. O cão abria um olho agradecido e deixava o outro continuar sonhando com suas coisas de cachorro. Pensava outra vez no longe que seus olhos não alcançavam. Desviava o olhar. A fímbria do horizonte continuava lá, na sua distância, e ao seu lado havia um cão que dormitava, indiferente à tarde.

*Vencedor do Prêmio Flerts Nebó - Melhor prosa 2011-2012