A INCINERADORA

Cresci numa família pseudonormal

Meus pais não eram permissivos

Ao contrário

Extremistas religiosos

Frequentavam a Igreja Universal

Eu odiava esse ritual

À época, eu não entendia nada.

Não sabia a verdade

A virada da minha vida aconteceu

Três pastores amigos do meu irmão trancaram-me num galpão e me estupraram

Nunca contei pra ninguém

De menina boazinha a monstra em uma tarde

Passei anos chorando em sublimação solitária

Depois, comecei a permitir-me ser agressiva.

Principalmente com meu irmão, a quem culpei por minha tarde de sodomia.

Planejei tudo

Mas depois de matá-lo fiquei meio arrependida

Ele parecia inocente quando arranquei seus olhos

Deve ter morrido sem saber o acontecido naquele galpão

Pois é

Eu não

Sou uma morta viva

E por isso só dei o tiro de misericórdia na nuca dele depois de três dias de tortura

Um dia para cada estuprador

O problema de matar alguém é saber como livrar-se do corpo

Aprendendo a sumir com os restos mortais, matar torna-se corriqueiro.

No caso do meu irmão

Meu primeiro óbito voluntário

Eu o esquartejei e o levei aos pedaços, dia após dia, para a Funerária Incineradora Boa Morte, onde trabalho.

Apesar de ter nojo de homens

Sou amante do dono

Assim fica fácil misturar os pedaços dos meus cadáveres nas incineradoras diárias

Depois é mamão com açúcar

Melzinho na chupeta

Não existe célula que tolere temperatura acima de 1000 graus

Esse calor é suficiente para derreter até a alma de quem sonhava reencarnar

Perdi a conta de quantos mandei pro inferno

Foi por isso que arrumei esse emprego

Para trucidar

Adoro saber que as cinzas entregues às famílias estão juntas com pedaços de outros defuntos

Depois de muitos matarmos, o gosto pelo insano fica apurado.

Fico molhadinha

Voltando à minha família

Em seguida ao sumiço do meu irmão, meus pais pioraram muito.

Oravam dúzias de salmos por dia

Eu não aguentava mais

Comecei a pensar em matá-los

Principalmente depois de ver meu pai e os três pastores algozes da minha felicidade inócua comendo mamãe na matinha

Excessos emocionais geram desarmonia

Não demorou muito

Esquartejei meu pai e o mandei aos pedaços para incineradora

Nesse caso específico, guardei pedacinhos e botei na sopa da minha mãezinha.

Foi lindo vê-la comendo-o

Matei-a logo depois dessa cena

Martelei sua cabeça até seu cérebro virar patê

Requintes de crueldade

Hoje tenho pencas de corpos para incinerar

Quantos mais, eu não sei precisar.

Todos cortadinhos e embalados nos meus freezers

Não tem um dia que eu não queime uma mão

Um pé

Uma cabeça

Ou qualquer outra parte do corpo desumano

As cabeças dão algum trabalho de transportar

Boa bosta

Logo todos estarão em suas urnas sublocadas

Sem coração

Doa quem doer

Eu planto ódio para colher desamor

Quanto aos meus três estupradores

Vou deixá-los vivos até suas filhas crescerem

Depois vou estuprá-las com um pé-de-cabra até a morte diante dos olhos pastorais

Estamos todos fadados de injúria

A morte começa viva

Meu compromisso é sobreviver