Sinal vermelho

.:.

Deitado no quarto de hóspedes do sobrado onde mora, Safadius – quarentão, dezesseis anos de casado e dezoito de convivência –, percebe que o casamento está se diluindo. O gosto, que desgosto, desbotou com o tempo, restando o amargo desleixo do que outrora fora cultivado a dois.

O “eu” do “Eu amo você!” continua presente e forte. Entretanto, a colocação pronominal se transformou. Antes de subir e deitar-se na rede, a esposa de Safadius, decepcionada, esbravejara sonoro e fulminante: “A cada dia que se passa eu tenho mais nojo de você, seu traidor!”

O respeito travestiu-se de agressões. A confiança se tornou a sentinela da intempestividade, surgindo, aqui e ali, fantasiada de insegurança, medo, intolerância. As palavras estão pesadas; possuem o condão de ferir. O íntimo está maltratado; os ânimos, machucados por pequenos descuidos cometidos por ambos. Os carinhos tornaram-se esparsos e disformes... E as gentilezas não existem mais. Acabou-se o “Bom dia!” e ao anoitecer, salvo as bênçãos dadas aos filhos, o silêncio predomina – desapareceram as confidências do dia a dia que impulsionam a cumplicidade.

Na cama, dois corpos, duas vidas e vários destinos que se desvencilharão. As sementes serão fragmentadas e germinarão novas possibilidades que o afastamento imporá. O leito de tantas realizações parece ter-se prolongado – agigantando-se – e o contato foi obstruído pelo abismo maniqueísta: surgiram dois polos, revelando-se o virtuoso e o pecador.

Por mais que estejamos errados, a natureza humana nos impõe absolvição! Somente os suicidas professam, num ato heroico de covardia, a própria condenação. Sendo assim, se nos mostramos incapazes de ceder, de reconhecer e de pedir perdão; se acreditamos que somos os detentores da verdade e o lado bom e fiel da relação, quem ou o que prevalecerá?

Temer o novo é antigo demais! Manter-se infeliz e ser a infelicidade daquele a quem se jurou amor eterno, egoísmo. Por que prender-se a uma relação tão frágil, sem sorrisos? A liberdade, a possibilidade de novos voos, não seria alternativa razoável?

Não se deve fazer chorar a quem prometemos sorrisos, mesmo tendo dito que seria “na alegria e na tristeza” – o fazer sorrir deveria ser obrigação; o choro, contingência externa, nunca a consequência de ações ou omissões imanentes ao casal. A continuidade das relações requer comedimento, abnegação, doação, zelo e sutilezas e o tempo exalta ou destrói. Despojados, orgulhosos e deveras taxativos, esbaldamo-nos nas agressões mútuas. Um fere com gestos; o outro, com palavras. Todos, porém, estão feridos!

Os olhares mudaram. As rugas do tempo e as decepções lhes tiraram dos olhos a energia do alvorecer. As pupilas estão contraídas. Onde foi parar a droga que os entorpeceu no passado, provocando palpitantes alucinações enxertadas de promessas ditas no furor da emoção? Falsas promessas, ou o tempo revela que o amor se volatiza como o placebo mal projetado da paixão?

Os gostos mudaram; os sonhos se modificaram, mas ambos ainda sonham, pois a vida é um sonhar onde a todo instante nos avisam que desceremos na próxima esquina. O que seria dos sonhos se o raio de curvatura dos devaneios não tendesse ao infinito... Os sonhos deles, entretanto, não convergem mais. Ele gosta de música, mas a música dele incomoda. Ele gosta de arte, mas a única arte que prevalece é a do marido levado que, rezando ou pecando, sempre trai quando está diante do computador. Vício? Desrespeito? Desamor...

Se for vício, é de auxílio e tratamento que o enfermo precisa. O viciado, muitas vezes, não tem a devida consciência da enfermidade e o voraz alijamento o conduz para nova dose. Realimenta-se o processo, portanto. Se for desrespeito, busquem as causas – as avalanches se iniciam quando da montanha se desprende minúsculo grão. Ao se desgarrar, a gravidade providencia a queda! Se for desamor... Sufocado, olhos fixos no teto, o marido pede ajuda.

No pavimento inferior, a esposa parece incomodada. O barulho da rede, ao balançar o marido, tira-lhe a concentração. Ela subirá, exigindo silêncio.

Noutro quarto do sobrado, duas crianças, tristonhas, aguardam a ordem para dormir. Se conseguirem...

– Bênção, pai!

– Que Deus nos abençoe, filha!

Crato-CE, 16 de maio de 2010.

10h46min

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 21/05/2013
Código do texto: T4301895
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.