AS CASPAS

Era um dia claro, era o dia primeiro. Em um dia assim, qual domador não entra na jaula para ensinar ? Um ônibus comum. Uma rua larga e longa.

Poderia usar os dois próximos parágrafos para descrever os seres que habitavam a lataria, mas eram os de sempre, com as roupas e fardas de sempre, os mesmos estilos e sabores de outros que eu e você conhecemos, basta dizer isso. Porém, atentemos hoje a dois personagens que muito chamaram minha atenção:

Em duas cadeiras que estavam bem na frente, próximas ao motorista, estavam sentados dois seres: um homem que usava um paletó marrom, cabelos loiros devidamente alinhados e sorria um riso falso e amarelado; o outro era um jovem que usava uma camisa azul, meio deteriorada de tanta sujeira e buracos, de alpargatas novas e cabelo curtinho, sentados lado a lado, compartilhavam o mesmo par de cadeiras. O homem curiosamente dialogava com o garoto, segurando em suas mãos (que estavam um tanto trêmulas) e passava manhosamente as mãos pelos cabelos daquele jovem, como quem lhe quisesse muito bem. O jovem parecia não ter firmeza nas pernas, pois estas tremiam feito vara verde, pareciam sem coordenação. Notei então algo curioso, porém, sinto dizer que isso causar-lhe-á um certo desconforto, asco ou nojo. A cena era essa :

O homem de paletó – que muito parecia um típico empresário – deitou a cabeça do jovem rapaz em seu colo, enterrando seus dedos entre os imundos cabelos que há pouco alisava e de lá arrancava caspas e cascas de feridas, algumas ainda até molhadinhas por fiascos de sangue. Olhava àquelas caspas ainda fresquinhas e depois engolia todas, mastigando e franzindo a testa, apreciando aquele banquete de rei. Tinha uma gula insaciável. Procurava por mais alimento em cada espaço da cabeça daquele jovem, e este se mantia de olhos fechados, como se perambulasse dentro de um bom sonho. Ninguém parecia notar aquela situação. Todos no balance da lataria, apenas olhando pelas janelas e reclamando do sol escaldante do meio-dia.

As caspas pareciam estar acabando, porém, escorria pela nuca daquele garoto um ou dois fiascos de sangue, que decerto fluíam das possíveis feridas agora abertas. Como despertado de um transe o jovem acordou. Deu um sorriso preto e incerto ao homem do seu lado, que parecia ter lhe mostrado uma solução. O homem também mostrou os dentes amarelados ao jovem, e neste contraste de cores foram se entendendo. Duas pancadinhas no ombro desejando-lhe boa sorte, então o jovem levantou-se. Todos ficaram apreensivos. Duas mulheres que estavam próximas a ele seguraram firme suas bolsas, não se pode vacilar. Mas o jovem começou a falar, uma fala mansa e um pouco vacilante, começou a explicar sua missão:

Havia chegado há pouco aqui na cidade de Fortaleza, viera de longe, viera por debaixo do estado do Ceará, viera tratar-se aqui, na quentura da molecagem cearense. Era viciado em drogas, e as drogas lhe faziam mal, queria a cura, e sua sorte fora a ajuda de uma mão-amiga que aqui lhe acolheu. Deixou tudo lá: família, amigos, mulheres, futebol (é, por que estamos no Brasil, lembra ?) ... jurou que deixou até as drogas, vejam só ! A mão-amiga a qual lhe acolheu primeiro disse que não tinha nenhum interesse financeiro, mas agora já não podia mais bancá-lo sozinho, por isso ele estava ali, para passar de mão-em-mão um pouco do fruto do seu trabalho, sem compromisso, só em segurar já estaríamos o ajudando. Sua voz era compassada e programada. Parecia ter a garganta rouca, e por algum motivo

não bebia água. O que trazia hoje era uma novidade ! – assim ele disse. Chicletes de Babaçu, a sensação do momento. Disse que o tal chiclete curava da rouquidão, mal hálito, sinusite, virose, diarreia e da fome. Passou de mão-em-mão. Voltou para onde começou a falar e continuou seu discurso. Mas sua voz era fraquinha e não tão convincente ... e agora? Passou recolhendo o fruto do seu trabalho: ninguém comprou.

Baixou a cabeça e, calado, voltou ao seu lugar, ao lado do homem de paletó. O rapaz então mostrou ao homem um olhar tímido, temeroso, e o senhor-paletó o mirou com um olhar frio e raivoso, com dentes trincados, como um domador pronto para castigar sua fera que não cumpriu corretamente seu número. Mas logo aquela fúria se desfez. Segurou o queixo do jovem rapaz e mostrou-lhe novamente o sorriso amarelo, mas ainda a dentes trincados. Teria então descoberto uma maneira de deixar aquele jovem um pouco mais feliz? Passou-lhe novamente as mãos pelos cabelos, que agora já endureciam o sangue úmido, criando novas caspas e suculentas cascas de feridas. Fez um sinal positivo com a cabeça, como se encorajasse o rapaz a mais uma tentativa, e antes que o jovem novamente se levantasse, sussurrou baixo no ouvido 'escrotamente' carregado de cera do menino:

- Fale mais alto, mais triste ! Peça por Deus ! Foram as palavras-chave.

O jovem levantou-se com mais firmeza, suas pernas já não tremiam mais. Novamente pronunciou sua ladainha, a mesma com que nada conseguira anteriormente, mas desta vez, como em um dos contos de Sherazade, proferiu aquilo que talvez seria daquele dia em diante fosse sua carta de manga. Para encerrar seu discurso agradeceu a todos dizendo:

- Que Deus ilumine os caminhos de vocês, tenha uma boa viagi e que Deus abençoe vocês ! Deus, Deus !

O dono do paletó estava até com lágrimas nos olhos. Levantou-se do trono a aplaudiu a sua cria de pé. De marrom, logo seu paletó passaria ser branco, esverdeado, preto ou cinza, cores marcantes e novas. O jovem passou apenas recolhendo o dinheiro de todos – todos- que compraram o fruto do seu trabalho. E desde aquele dia acoplou a palavra ‘’Deus” a seu vocabulário, pois percebeu ser bem mais fácil e rápido para passar à frente o fruto do seu trabalho, se sairia bem melhor assim, mesmo não acreditando em quem constantemente invocava.

Foi o que vi.

Alex Costa
Enviado por Alex Costa em 17/05/2013
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