Adiós, Amigo...

Adiós, Amigo...

Esse conto é dedicado a Jeff Hanemann, Marco Antônio “Black” Cunha , Paulo Vanzolini e Rapha Pugliesi. R.I.P. my old friends.

A dor intrínseca da perda de alguém próximo é lancinante mesmo que você tente exercer o desapego no seu cotidiano.

Naquela manhã eu tinha chegado à redação do jornal onde eu trabalhava vinte minutos atrasado. Quando tirei a jaqueta que pendurei no espaldar da cadeira e acionei o computador para preparar minha coluna diária percebi um clima estranho. Senti algo pesado e nefasto no ambiente. Poucas pessoas estavam ali. O Carlo Malta, meu velho chapa, ainda não tinha chego, pois sua mesa de trabalho estava vazia, contudo não achei nada de anormal, até porque um lapso temporal pela manhã não é nenhum “bicho de sete cabeças”. Resolvi tomar um chá no reservado enquanto a máquina carregava. Havia uma rodinha de pessoas por ali e logo vi a Gika Bala, nossa diligente e gatinha colega de trabalho. Fui chegando e foi nesse instante que reparei que algo estava muito errado. De seus lindos olhos castanhos vertiam grossas lágrimas. Aproximei-me e ela me abraçou apertado. Minha camiseta logo ficou ensopada. Ela soluçava alto e as outras pessoas ao redor baixaram suas cabeças. Perguntei o tinha acontecido e ela apenas meneava a cabeça e mais soluços e soluços. Será que tinha sido demitida por algum motivo. Tentei me desprender, mas ela me segurou com mais força. Passei minha mão pelos seus cabelos para tentar que ela se acalmasse. Em vão. O que teria acontecido? As pessoas começaram a dispersar e me vi a sós com a Gika. Fiz ela sentar e me contar calmamente o que tinha acontecido e a garota apenas repetia como uma alucinada que tínhamos “perdido o nosso Carlo, o nosso amigo, o nosso parceiro de bebida, o nosso escritor maldito”. O quê!? Não entendi nada. Fiquei perplexo. Será que o Carlo é que tinha sido escorraçado do jornal por a Leda ter se cansado das cagadas magistrais que ele fazia como ninguém? Não poderia imaginar o quão longe eu estava da verdade. Levantei-me e trouxe um chá de camomila para a Gika. Ela tomou uns goles curtos, assuou-se num lenço de papel e tentou secar as lágrimas e soltou a bomba. Carlo Malta, escritor, poeta, jornalista, letrista, cronista, dois livros lançados, três letras musicadas, campeão brasileiro dos “pesos meio bêbados”, apreciador de carne de onça e pão com bolinho de carne, frasista nato e exímio jogador de general tinha falecido! Como?! Tem certeza disso, eu quis saber? Parecia que eu estava no meio de uma brincadeira de péssimo gosto ou de uma pegadinha mambembe de televisão. Foi aí que a Leda chegou e seus olhos mudaram de cor quando ela me deu a mesma notícia. Merda! Raios múltiplos! Porra! Inferno! Então Leda chamou-me até sua sala com ar refrigerado e livros pelas estantes para conversar. Dava para ver que tinha chorado e estava triste e abalada. Tinha mais uma pessoa na sala. Uma expressão arrasada de medo e impotência e tristeza. Layla. Lá vamos nós...

A Leda solicitou que Layla sentasse ao meu lado nas cadeiras em frente de sua enorme mesa de dona e responsável por aquele jornal. “Pasquim indecente” como chamava meu velho amigo. Chamou um estagiário, um burro de carga qualquer e ordenou-lhe que fizesse o necrológio do Malta. Eu – às vezes – o chamava pelo sobrenome devido a nossa amizade longa e verdadeira apesar de ter entrado para trabalhar naquele periódico dois anos antes dele que na época estava passando por um perrengue danado dormindo onde dava e comendo duas vezes por semana. Foi isso que ele me narrou na época. Eu não conseguia digerir aquelas informações. E eu tinha perguntas: “como”. “quando”. “onde”. Lembrei-me então que dois dias antes tínhamos ido até o Alaor na hora do almoço como fazíamos todos os dias. Claro que aquela fauna pitoresca do bar já estava lá firme e forte àquelas horas. Bebendo cerveja preta uma média de café com leite, enchendo a boca de sanduíche de pernil e de mortadela, virando tragos de alta octanagem ou comendo PF’s de arroz & feijão com macarrão à bolonhesa e salada de alfacecebolarabanetetomate e um filé de igreja de lambuja. Pedimos ao Alaor o de sempre. Ou seja, estanho com cerveja preta. O Carlo vira para mim e pergunta.

-Quantos anos a gente frequenta essa espelunca?

-Desde que você entrou no jornal. E se não me engano fui eu que te trouxe aqui. Respondi.

- E a gente nunca experimentou essa lavagem de prato feito que serve aqui...

Juro que fiquei encafifado afinal Carlo não era muito de comida. Era do meu time. Achava comer meio chato. Preferíamos beber. Dá menos trabalho. Ou tomar sopa por ter preguiça de mastigar, todavia naquele dia ele pediu um daqueles e eu resolvi acompanha-lo. Sentamos e comemos e no final pedi mais cerveja preta e estanho e ele não quis. Saiu direto para fumar. Paguei nossa despesa e fomos andando devagar em direção ao jornal. Sugeri um baseado para a digestão e meu amigo alegou que não tinha conseguido tragar a fumaça pela manhã e seu “freak” estava quase inteiro. Disse que talvez pudéssemos sair no meio da tarde para um trago rápido e um “tapa na pantera”. Estranhei, pois nunca tinha vista aquele maluco recusar nada... Resolvi não dizer nada e voltamos ao trabalho. No horário de sempre saímos e perguntei se ele queria tomar algo e meu chapa alegou que estava indo ao encontro de sua namoradinha Layla e se mandou. Durante aquele dia reparei que Carlo estava tossindo mais do que o normal. Sabe como é. Os chiados das asmas e os assovios de bronquite. Deveria ter apanhado uma gripe suína? Nunca tinha o visto reclamar da saúde mesmo quando estava numa ressaca monstruosa que se espalhava por todo seu rosto de forma clara e límpida. Na manhã seguinte avisou na redação que não iria trabalhar e um zé mané qualquer cobriu o seu dia. Agora quem falava comigo e com a Leda era a Layla. Linda e doce menina que ele tinha arranjado já fazia quase dois anos e que estavam em um relacionamento estável de muitos altos e baixos no princípio e que ao passar dos meses foi entrando nos eixos movido apenas pelo amor reciproco que sentiam. Layla dizia para Leda que quando chegaram em casa Carlo foi preparar um creme de cebola e pediu vinho. Sua namorada estranhou até porque ele era da vodca, da cerveja e do uísque e quanto mais alto o teor alcoólico e o porre melhor. Tomaram a tal sopa e foram assistir um filme na TV a cabo. Ele reclamou de dor de cabeça e disse que iria tentar dormir. Acordou às quatro da manhã e tentou ir ao banheiro. Layla também acordou e contou-nos que ele balbuciava coisas estranhas e ininteligíveis. Sua cabeça pendeu para o peito e ele tentou deitar-se. Convulsão. Ela, em desespero, ligou para o pai que prontamente ajudou a colocar o meu velho amigo no carro e tocou para o hospital mais próximo. Não reagia mais a estímulos. Sete da manhã estava morto. AVC foi o que médica escrota disse friamente para o pai a filha que aguardavam os desdobramentos comuns nessas situações extremas. O corpo seria encaminhado para Instituto Médico Legal e até que onde se sabia ele não tinha pais, parentes ou qualquer tipo de ligação familiar. “As pessoas nascem sozinhas e morrem sozinhas. É tão difícil para essa gentalha sem noção compreender isso?” era umas das frases que ele sempre repetia para mim e para quem quisesse lhe escutar. E realmente eu, João Mendes, acredito nessa máxima. A Leda prontificou-se em fazer todo o trâmite e dispensou toda a redação e os funcionários e que a matéria sobre seu funcionário estaria pronta para quando o jornal começasse a circular.

Algumas horas depois toca meu celular. Número desconhecido no display. Resolvi atender e era a Layla. Disse que tinha feito um “mexe remexe” nos documentos do Carlo e encontrara seu plano funerário de cremação e que o ritual seria realizadono final da tarde e perguntou se eu iria. Confirmei que sim e fui. Quase não acreditei no que vi. Parecia show de rock! Um monte de gatinhas descoladas e com belas carnes para se cevar nelas, um bando de bêbados e maconheiros do Bar Eslavo onde ele frequentava todas as noites desde que tinha comprado o seu apartamento de fundos, três ou quatro vizinhos, um cara que era traficante que eu também conhecia, colegas do jornal com quem ele antipatiza, mas não dizia para ninguém a ser para mim e um povo do hype de Curitiba. Turminha do velho Bar do Lino e do Lado B. Músicos, cineastas, poetas. Artistas picaretas. Tinha vodca, vinho de garrafão, latas de cerveja, gin e uísque gringo da sua marca favorita rolando. Seu corpo sem vida já estava queimando e o povo chorava ou ria às gargalhadas. Era o funeral mais surreal que eu já tinha presenciado. Até o tal do Rato e do Sabugo, os “leva e trás” do seu bairro estavam lá. E seu amigo fiel e vizinho Mariano com a sua noivinha. Layla recitava o “Livro Tibetano dos Mortos”. Uma vez numa bebedeira em sua casa ele tinha me dito que era para fazer isso no dia que ele cumprisse sua passagem. A Leda veio ao meu encontro. Ficamos lado a lado em silêncio. Foi aqui que chegou uma senhora entrada em anos, com o cabelo muito arrumado, toda de preto, porém elegante e bem vestida usando óculos escuros e deposito ao lado do crematório um ramalhete de antúrios. Ninguém sabia quem era. Ficamos curiosos. Ela não dirigiu a palavra a ninguém e ficou perfilada ali. Até tentei assuntar quem era e ninguém fazia ideia. Seria sua mãe? Ninguém sabia se seus pais eram vivos. E ele nunca esclareceu isso. Sempre que se fazia a pergunta ele dizia “não” e desconversava ou ia para o Alaor ou ia fumar. Aquela litania tibetana continuava e às vezes Layla parava o texto para deixar derramar mais algumas lágrimas para seu falecido companheiro. Na real, tudo foi bem rápido e quando a Leda recebeu a urna com as cinzas de Carlo Malta veio um repórter de polícia de um jornal de concorrência desfez o mistério e descobriu quem era a distinta senhora que trouxe as flores. Era ela! A Olga! A mais poderosa e antiga cafetina do Bairro Mercês e circunvizinhanças. E então foi assim. Tudo acabado. Ele se foi antes de mim de muita gente mais. Dói. Não por apego ou o quer que fosse. Dói porque fica o hiato. Nunca mais vamos poder beber juntos e insultar o mundo todo como costumávamos fazer juntos. Calara-se de vez aquela voz que dizia abertamente e em bom tom o que os hipócritas e os conformistas não admitem ouvir porque todo moralista é falso e covarde. Nunca mais eu leria aqueles textos bombásticos cheios de sarcasmo e ironia que por muitas vezes lhe causaram problemas e que ele não deixava se abater. Nunca mais vou receber aquela ligação no sábado à tarde daquela voz que quando eu dizia “alô” respondia “como vai esse filho de uma puta genial?”. Os bares da cidade nunca serão os mesmo sem essa criatura que dizia ter poucos ou quase nenhum amigo e que cativava as pessoas por seu jeito franco e direito. Peguei um carona com alguns sujeitos que estavam indo para o Bar Eslavo e pedimos uma garrafa de uísque e cerveja para beber o defunto e começamos a contar histórias engraçadas que poderiam parecer inverossímeis ou escatológicas ou escabrosas para quem não o conhecia mas eram as situações do dia-a-dia em que ele vivia dentro de sua rebeldia eterna e genética e da sua enorme sinceridade e franqueza. Ele pagou o preço por sua intensidade e se foi cedo. Não é assim que morrem os bons? Enquanto os intolerantes e os violentos e prepotentes ficam para a semente. Chudras.

Adeus velho amigo. Adeus Carlo Malta. Adeus meu irmão que eu escolhi.

Pedi licença. Virei meu copo. Entrei no banheiro. Sentei no vaso. Nesse momento as lágrimas brotaram e eu deixei que caíssem à vontade.

“Homem não chora”.

Quem foi o cão sarnento que inventou essa bobagem de mau gosto?

Acho que esse já foi amarrado e queimado.

Que não é má ideia...

Adiós, amigo. Nós nunca vamos ter esquecer.

Curitiba, 16 de maio de 2013, 13 graus célsius, Outono.

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 16/05/2013
Código do texto: T4294041
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