CIÚME

Na penumbra do quarto, iluminado apenas pelos reflexos das luzes dos postes da rua e de algumas propagandas, inúteis naquela madrugada fria, sem transeuntes, o telefone antigo, enfeitado com madrepérola, praticamente sem utilidade após o advento do telefone celular, tocou dentro do pequeno aposento...

Toque estridente...

Irritante...

Inconveniente...

Chato...

- Alô!... Alôôô!!!... Merda!

Álvaro colocou o monofone no gancho. Menos de um minuto depois o telefone tocou outra vez. Agora sentado na cama, Álvaro atendeu antes do terceiro toque...

- Alò!... Alô!!! Vá ligar para a casa da puta que lhe pariu, merda!

Para não ser mais incomodado, Álvaro desligou o telefone da tomada.

- Quem era amor?

- Engano...

- Como engano? Quem é engano? O que engano queria?

- Como engano amor? Engano é engano. Alguém que ligou o número errado...

- Como é que alguém vai ligar um número errado?

- Qualquer um pode digitar um número errado e quando completa a ligação, descobre que errou.

- O que foi que engano falou?

- Ele não falou...

- Quer dizer que você conhece a pessoa que ligou?

- Não amor, eu não disse que conheço a pessoa que ligou.

- E como você sabe que era ele?

- Que ele amor?

- Ele. O homem que ligou duas vezes para você.

- Ele nesse caso indica indefinição porque eu não sei quem ligou.

- Se você não soubesse quem era e quisesse demonstrar que desconhecia a pessoa, teria dito esse...

- Se eu estivesse preocupado com a gramática, a essa hora da madrugada, teria dito essa...

- Muito bem. Então era uma mulher...

- Meu amor, eu não disse isso.

- Disse sim. Você disse que deveria ter dito essa e, que me conste, essa é feminino, e feminino é mulher. Então seja honesto e diga logo que foi uma mulher que ligou para você...

- Meu amor, preste atenção; a frase completa seria: eu não conheço essa pessoa que ligou, mas por economia eu deixei o sujeito subentendido.

- Álvaro você é muito inteligente, mas eu não acredito em nada disso que você está falando porque você não me enrola mais.

- Isabel Cristina, não é possível que você esteja fazendo uma cena de ciúme por causa de uma ligação errada, às duas e quarenta e cinco da madrugada de uma segunda feira, sabendo que daqui a pouco terei que sair.

- Agora você admite que vai se encontrar com a vagabunda que teve a coragem de ligar no meio da madrugada para a casa do amante, mesmo sabendo que ele é casado...

Ou será que não sabe? Você não teve coragem para dizer seu estado civil? E que o telefone fica na mesa de cabeceira, bem junto da infeliz que dorme junto com você e que com toda certeza iria acordar?

- Isabel Cristina...

- Está vendo? Você já nem está mais me chamando de amor...

- O que eu estou dizendo é que daqui a pouco vai amanhecer o dia e que eu tenho que ir trabalhar...

- Eu não sabia que o seu trabalho agora é de levantar no meio da madrugada para ir encontrar-se com as vagabundas que ligam para aqui, porque foi isso o que você disse com todas as letras.

- Eu desisto amor...

Eu não vou falar mais nada.

- Você não vai mais falar comigo...

Muito bem...

Quando você souber da minha morte, vai amargar o remorso para o resto da vida.

- Criatura deixe-se de tolices. Esqueça esse telefonema...

- Eu sou uma infeliz que nem nome tem mais...

Antes era amor, depois Isabel Cristina e agora é criatura...

Uma coisa qualquer, sem valor, descartável...

Pode ir se encontrar com sua amante...

Quando você voltar, se é que vai voltar, só vai encontrar o meu cadáver...

Vou cortar meus pulsos...

Adeus Álvaro.