O Protagonista
Nunca imaginei que aquele senhor viesse a ter protagonismo em minha vida. Em minha ânsia juvenil de viver não havia espaço para considerar a figura de um senhorzinho como ele. De fato por muitos anos ele estivera ali, morando na mesma rua, algumas casas após a minha. Pela manhã podia vê-lo sentado na calçada sugando a fumaça de um velho cachimbo. Agora que me encontro nessa situação passo a lembrar dos detalhes que o envolviam: dentes amarelos, alguns fios de cabelos brancos contrastando com a tez negra, uma magreza que beirava a definha. Por alguns anos houve até mesmo um cão ao seu lado, uma criatura que nunca latia, apenas rosnava e o fazia de uma maneira interminável, como se o rosnado tivesse, de alguma maneira, aderido à sua natureza assim como a respiração. Uma vez ou outra alguém fazia um comentário jocoso sobre qual dos dois, homem ou animal, era mais velho. Provavelmente o cão, já que um dia parou de rosnar e por isso morreu.
Como pode duas vidas com tamanho espaço de tempo entre uma e outra estarem ligadas agora de tal maneira? Duas vidas que nunca interagiram além das cordialidades sociais, nunca emprestaram o ombro para um choro ou o ouvido para uma súplica. Ainda assim cá estamos: eu, um rapaz que até segundos antes tinha planos palpáveis para o futuro, e ele, um senhor que deixou de respirar há segundos. Mesmo que um de nós tenha morrido o laço firmado nesse momento jamais se partirá, os papeis agora eternizados: algoz e vítima.
Lembro-me do dia em que estacionei o veículo em frente a minha casa pela primeira vez, lembro que o próprio defunto estendera a mão e me parabenizou pela conquista. Agora ouço o rosnar do carro ao fundo, ao contrário do antigo cão a máquina não fora feita para andar sem coleira, em um pequeno instante de liberdade foge ao controle e sai por aí criando laços eternos, como este que agora prende a mim e ao senhor, para sempre.