Murmúrios de alegria

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O velho saltimbanco e mudo viajante entra no trem da metrópole mundial, na primeira estação. Anualmente, milhões de pessoas de todos os cantos aportam por lá. Em algumas, existe o desejo de embrenharem-se na história da humanidade, conhecer nos museus a realidade em concreto do abstrato passado dos ancestrais; sonhar em cores, longe da visão em preto e branco das multicoloridas páginas dos livros – o real matiz do mundo está no toque. Todo conhecimento repassado por alguns dos sentidos, sem o crivo da pele ou o contato das mãos – perseguidas por olhares curiosos – é temperança quase incolor. Sem o íris da cor o mundo é cego, a orbe é muda, sem cheiro, sem título, sem audição de árias. As paisagens voam com o deslizar do trem... Olhar curioso. Ouvidos atentos. Ele as observa.

Havia alguns lugares vazios. Param noutra estação, a segunda. Portas se abrem. Breve intervalo. As aberturas se fecham em sincronismo militar, numa pancada só. Silêncio. Rumam em direção à nova parada. Menos olhares se cruzam. Mais vazios incorporam-se aos metais suspensos de cada vagão. Os passageiros vão dando adeus àquela viagem e as paisagens se revelam clandestinas. É a terceira estação. Haverá reencontros, mas a tônica é a despedida. Não há choros. Não há desentendimentos aparentes. A correria confere ao ranger das peças, no atrito dos dormentes, aflitiva inquietude.

Outro homem interrompe a apatia do deslocamento. Ele entra na terceira estação. Observa. Senta. Cruza as pernas. Olha para o histrião e, sem convite, inicia incompreensível desabafo. Ambos se entreolham. O recém-chegado parece deprimido, angustiado, desequilibrado e, por vezes, ameaça levantar-se abruptamente. O discurso solitário prossegue. Ele esbraveja – parece xingar o velho. Duas realidades. Dois mundos. O homem mais novo é do velho continente, bem empregado, alto, claro, olhos azuis, trajes refinados – parece solitário também. Reinicia a fala. O discurso parece preso, necessitando de alterité para o extravasamento.

O velho viajante, perseguidor da existência, empregado nas ruas da arte, fazendo rir e tentando comunicar-se sem a palavra que lhe fora roubada de nascença – é feliz. Andante, desde a tenra idade, aprendera que num gesto pode haver alento; numa gorjeta pode estar o alimento... E no silêncio, o grito da existência infeliz, o parto do natimorto, sem a libertação do medo.

E o moço vai falando. Falando. Gritando. Gritando. Gesticulando. Gesticulando. Do outro lado, olhares curiosos, afáveis, benevolentes. O moço parece chorar... E finalmente chora. Lágrimas pesadas. Corpo suave, leve. Silencia. Encara o velho homem do novo mundo. Ambos põem as mãos à altura do peito. É o código. Sentem o pulsar dos próprios corações. Vida! Esperança. Ressurgir. O velho abre um lindo e condescendente sorriso. O moço sorri do outro lado. As feições cerradas de outrora parecem portas escancaradas, esperando o filho desaparecido, o desvanecer-se da vida errante, ou o fim da condição de peregrino. Abraçam-se num sinal de mútuo agradecimento. O jovem sai, cantarolando desconhecida melodia. Ele percorre os vagões – agora pelo lado de fora do trem... Aqui e acolá alguém, assustado, comenta a atitude desapegada do jovem. O velho escuta o som dos assobios que se tornam cada vez mais distantes. Internaliza cada nota da canção e, ao descer, na quinta estação, surpreende-se ao repetir os mesmos acordes, assobiados noutra dimensão: com a gravidade que o tempo nos impõe, à medida que passam os dias. Nos ombros havia inescusável pesar; nos lábios, a liberdade do canto sibilar.

Antes de partir, ao descer na estação anterior, o jovem, olhando para o velho, erguera os longos e vigorosos braços, e, num gesto, fez sinal de adeus.

Crato-CE, 11 de setembro de 2011.

20h14min

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Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 15/05/2013
Código do texto: T4291869
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