O que cabe debaixo da ponte

Pés descalços e imundos, esparramados; que pisavam com força, obrigados que estavam a suportar o peso dos corpos e da miséria. Corpos magros, mirrados, carentes de alimento, envoltos em trapos, lutando contra o odor e a morte.

Farrapos de gente, uma trágica caricatura de família. Ele, a mulher e os filhos: Duas meninas de treze e onze anos, e o pequenino, de apenas oito meses, que aferrava a boca aos peitos murchos da mãe, como se o sugar constante fosse dar ao ser seco, ao menos uma gota de leite.

O viaduto os cobria, já que depois das últimas chuvas o barraco, o morro e toda a mesquinharia que aquele povo possuia, havia sido arrastado pela enchente. Era como se aqueles que possuiam tão pouco, estivessem sendo obrigados, por um Deus vingativo, a viver sem nada.

Ali estavam vivendo, esmolando, existindo apenas por existir.

A fome apertava, judiava nos dias em que a esmola era pouca, ou a polícia vigilante. E então, quando não havia remédio a mãe Joana, chamava lá, a filha mais velha, tão esfomeada quanto os outros e dava-lhe a seguinte ordem:

- Vai ali na venda do Clarêncio, pega o pão pra tua mãe.

- Eu já fui ontem mãe…

- E vai hoje, e amanhã, e depois, enquanto o homem quiser.

- Mãe, mas ele me machuca… - A menina estacava de terror.

- Ah, é? Machucado não mata menina! Fome mata.

A garota se levanta relutante, e caminha em direção à venda, que não passa de uma casinha de tábuas muito mal construída, apenas para dar aos viajantes pão e cachaça.

Ela chega à porta e espia, medrosa, pedindo ao seu Deus para que haja algum freguês lá dentro. Mas seus rogos não são atendidos, Clarêncio está só, metido atrás do balcão. Ele abre um sorriso que revela as gengivas vermelhar.

- Chega menina, chega.

- Boa noite, seu Clarêncio.

- Chega anda! Já vou fechar, agora que você chegou.

Abandona o balcão, passa por ela, fecha a porta. Lá do viaduto, a mãe Joana, vê a porta bater e abafa um suspiro de alívio. Clarêncio para diante da menina, que permanece com os olhos pregados no chão. Segura a garota pelo queixo e a faz encará-lo.

- Então você gostou, não foi?

Ela não responde. Em seus braços mulatos, manchas roxas denunciam os apertões de Clarêncio, na véspera. O homem tinha uma risada grosseira.

- Como é? Gostou, não foi? Já pensou no que eu lhe disse? Hoje eu tenho um presentão pra você, mas a gente tem que fazeer tudo direitinho.

A menina suplica , os olhos baixos, a voz sumida:

- Não pode ser só igual ontem?

Ele se aborrece:

- Mas vejam só, a metida. Não pode, não! Você devia era estar feliz, por eu gostar de você e dar comida àquela tua gente, pra vocês não morrerem de fome. Hoje, meninazinha, a gente faz tudo, ou não faz nada. Olhe aqui, olhe!

Atravessa a venda imunda a passos largos. Junto ao pequeno fogão, levanta a tampa da panela.

- Olhe menina! Venha ver!

A garota obedece, olha a panela e sente o cheiro da comida, arroz, feijão, ensopado de galinha. As pernas tremem e boca se enche d’agua.

- Tudo isto é para você e sua gente, menina. E como é? Faz ou não faz?

- Faço. - A voz era um fio.

O homem sorriu porcamente.

- Então anda! Tira a roupa.

Não havia muita coisa a ser despida. Logo o corpo de treze anos da menina está exposto à luz pálida da lâmpada sombria. Ela não tenta se esconder, permanece ali, em pé, os braços caídos ao longo do corpo. É a imagem da derrota.

Clarêncio observa-lhe o corpo. As carnes são firmes, apesar de poucas. Acima das costelas visíveis, os seios começam a brotar. Estende a mão, em uma carícia rude, a garota não reage. Ele respira fundo. Abre o cinto.

- Você vai gostar! Venha cá, vamos começar como ontem.

Ela se aproxima, resignada.

Clarêncio tem a voz rouca, segura os braços da moça e a coloca, bruscamente, sentada no balcão. Com as mãos afasta os joelhos ossudos da garota, e se coloca entre suas pernas.

Vai se aproximando devagar, a pequena sente o bafo da cachaça adentrando-lhe as narinas. De repente, uma dor aguda, em uma parte do seu corpo, quase desconhecida, a atravessa sem pudor. Tenta recuar, ele a segura. Abre a boca, vai gritar, mas a mãe fétida e imunda de Clarêncio abafa-lhe a voz, enquanto os movimentos a sacodem com violência.

E a dor vai crescendo, crescendo…

Fica caída sobre o balcão, soluçando convulsivamente. É um pranto mudo, machucado. Todo o corpo lhe dói, os ossos protestam, mas é ali, entre as pernas, onde o sangue continua a escorrer, que a dor é mais forte, quase tão forte quanto na alma.

Clarêncio vai até o fogão e entrega a comida para a menina.

- Vê se tráz a panela amanhã. - Resmunga.

Ela recebe, muda, o pagamento pela sua virgindade e então dirige-se para a porta. Quando toca no ferrolho, ouve a voz de Clarêncio:

- Você tem uma irmã, não tem? Venha com ela amanhã, pra gente brincar junto. Eu posso dar muita coisa pra vocês duas.

Muda, apática, ela abre a porta e sai.

Lá na ponte, a família espera. A mãe não mostra qualquer rastro de preocupação com a demora da menina.

- Uma panela? Que foi que ele mandou?

A mulher suspende a tampa:

- Ah, graças a Deus!

Olha para a filha como se não pudesse acreditar na sorte.

- Que é que está esperando? Vá chamar tua irmã.

A família se reúne ao redor da panela. E no diálogo familiar, coube ainda, um comentário grato e fingido da mãe Joana:

- Sabe José? Foi seu Clarêncio, da venda, que mandou pra gente! Deus o guarde, ele é tão bom.

Ele não responde. A mulher, ergue os olhos e vê, que pai e filha, a menina machucada e o marido derrotado, a olham fixamente. À luz do poste, consegue ver as lágrimas que reluzem em ambos os rostos, enquanto as mãos levam a maldita comida à boca. Sente que o desespero é o mesmo nos dois, que o sofrimento é igualmente profundo e murmura para si mesma: ”Ele sabe.”

E de repente, a tal mãe, compreende. entende que debaixo da ponte, o espaço apenas comporta a eles e à sua miséria.

Onde se abrigariam então o orgulho e a moral?

Efêmera Capitu
Enviado por Efêmera Capitu em 12/05/2013
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