O Buraco

Ela ainda estava com os olhos abertos, e já passava da uma. A janela mostrava a escuridão do céu lá fora, o vazio. Compartilhava desse vazio há muito tempo, desde quando pensou - pela primeira vez - ter feito tudo o que queria. Mas não. Ela havia se enganado mais uma vez, e sabia disso. E aquela angústia que lhe corria nas veias sufocava-a, bem na garganta. E agora, o que era?

Era que não sabia mais para onde ir. Estava tão presa quanto uma ave silvestre que é capturada de uma floresta densa, e úmida. Agora estava tudo seco, exatamente seco. Ela tinha sua casa, suas janelas, suas cortinas, sua mesa de jantar cara, suas jóias…Mas havia perdido a si mesma. Eram tantas as conquistas, e tinha esquecido de conquistar o que morava além de tudo aquilo. E de que adiantava, então? Sua cama de madeira estrangeira - a mais linda existente na loja, na época em que a comprara - estava vazia ao seu lado. Ela estava sozinha em sua cama estrangeira.

Os sofás finos - que somavam cinco lugares ao todo - estavam sempre com quatro lugares vagos. Ninguém nunca os preenchera. Ninguém viera preencher o vazio que sentia por dentro. A água podia vir quente e doce de seu chuveiro, mas a pior água era aquela salgada que lhe escorria no rosto, como agora, ao anoitecer. Era quando ela sentia mesmo o buraco no peito. E não tinha jeito.

Ansiava por liberdade, por vida, por calor humano, por sair da rotina. Cansou-se de estar ali tão só, com sua casa requintada. Deixara amores e amigos para trás - além da própria família - para atender aos caprichos de seu egoísmo barato. Ela quis ver a cor do dinheiro, e este tornou cinza todas as outras cores de seu destino. Tomou-lhe por completo, roubando-lhe cada minuto de seu tempo. Perdia tardes, e até mesmo noites, em cima de seu grandioso emprego. Este dera-lhe o falso conforto, e a desconfortou por dentro.

Com a fome que sentia agora por recomeçar, ela facilmente sairia correndo, com os pés descalços no chão, a provar tudo aquilo que condenava. Encontraria pessoas; veria o mundo girar de outra forma; faria amigos; iria contra suas regras medíocres; perderia o controle - por que não? E talvez achasse quem se deitasse ao seu lado em uma noite como aquela. Alguém que lhe bagunçasse os cabelos, largasse o copo de chá na janela, preparasse o café enquanto ela dormia. Alguém que lhe esquentasse os lábios - agora tão frios.

Mas já amanhecia - e ela iria ao trabalho - fazer de todas as suas noites seguintes, tão vazias quanto essa.

Dona Iaiá
Enviado por Dona Iaiá em 11/05/2013
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