Ele podia ver o viaduto da BR dali

Renan parou o cara na rua estreita e voltou meia quadra. Na esquina uma loja de cadeados e maçanetas, acima da loja, no segundo andar, uma placa amarela com alguns ideogramas que dizia “Colchões Ortopédicos”, e na janela uma faixa que vendia “travesseiros anti-ronco”. Renan subiu por uma escadinha até o segundo andar que só tinha duas portas, uma estava entreaberta e tinha uma placa semelhante à de fora nela. Ele entrou e estava em uma sala com alguns colchões e travesseiros e no fundo dela um senhor estava rabiscando algo com a cabeça apoiada na mão esquerda.

“Com licença?” Disse Renan e o senhor levantou a cabeça mostrando seus traços orientais. “Olá.” Respondeu o senhorzinho num tom sereno, encompridando o A da palavra. “Eu queria, hã... Dar uma olhada nos colchões, saber preço...” O senhor se levantou. “Sim, sim. Quer algo em especial?” Renan olhou pela janela, ele podia ver o viaduto da BR dali. “Bem, não sei. É que eu tenho dormido mal e acordado com dores no corpo. Uma amiga me falou desses colchões, eu vi a placa e decidi entrar.”

A amiga em questão era Amanda, a ex-namorada de quem Renan tinha se separado antes de passar pelo viaduto da BR e avistar a placa.

“Sim, sim. Nossos colchões são bons pra isso! O senhor se quiser pode deitar no da amostra e ver o que o senhor acha.” Ele apontou para uma cama aprontada já com um dos colchões. Renan passou a mão e sentiu o colchão que era mais firme do que ele imaginava, então se sentou. Era estranho, mas não necessariamente ruim. Houve um barulho na porta que estava fechada atrás da mesa. “O senhor pode me dar um minutinho?” O senhorzinho disse juntando as mãos. “Já volto, fique a vontade.” E então passou pela porta tentando abrir ela o mínimo possível. Renan deitou então na cama, continuava estranha, mas não necessariamente ruim. Ele abriu os braços, fechou os olhos e sentiu o sol que vinha pela janela esquentar sua barriga. O colchão parecia melhor.

Ele tinha conhecido ela no primeiro semestre da faculdade. Isso fazia cinco anos, eles cresceram juntos. E ele tinha conseguido foder com tudo dessa vez.

Renan fechou os olhos e pensou mais nela até ouvir um barulho, abriu os olhos e olhou. Em cima da mesinha de escritório estava sentada uma garota que devia ter uns 15 anos, usava uma regata e uma camisa xadrez por cima, balança seus pés que calçavam um par de all star enquanto olhava desinteressada para Renan. Ele rapidamente desviou o olhar para o teto da sala que aparentava infiltrações. Ele não sabe quanto tempo ficou assim, mas logo ele ouviu a voz do senhor. “Filha, eu to atendendo um cliente.” Renan rapidamente sentou na cama. “Pai, me vê vinte reais?” Ela disse inclinando a cabeça pra trás. “Filha, já te dei dinheiro ontem. Não posso te dar toda hora.” Ela pulou para o chão. “É só mais hoje, depois eu não peço mais por um tempo.” “Como ontem?” “Como ontem.” Ela deu meio sorriso enquanto mascava o chiclete e olhou de canto de olho para Renan. “Filha, eu to atendendo agora.” “To vendo. Ele vai comprar algo?” “Filha...” O homem juntou suas mãos. “Ta, ta! Então não da nada.” Ela se virou em direção à porta. “Sua irmã nunca pede dinheiro.” Ele se virou para sua cadeira. “Porisso eu tenho que pedir em dobro.” Ela falou enquanto saia pela porta. Renan pode ouvir os passos rápidos descendo a escada.

“Desculpe. Essas crianças hoje em dia.” O senhor se sentou atrás da mesa e suspirou relaxando os ombros. “Não foi nada. Acontece.” Renan se levantou e esperou no meio da sala. O senhor voltou a cabeça para Renan, recompondo um sorriso. “O senhor gostou da cama?” “Sim, achei ela meio...” O senhor interrompeu. “Claro que nós teríamos que ver uma especialmente para o senhor, essa é só amostra. O senhor estaria interessado?” “Bem, eu gostaria de saber do preço primeiro.” “Ah, sente-se, por favor.” O vendedor apontou uma das cadeiras à frente da mesa.

“Cama de casal?” Renan demorou mais pra responder essa pergunta do que ele demoraria pra responder no dia anterior. “Sim.” “O preços vão de 450 a 1200.” “A mais barata por favor.”

Amanda era pequena, leve, ele gostava de carregar ela nos braços. Mas era brava, como toda a baixinha, como toda ruiva e baixinha. Crescia quando queria e ficava maior que Renan. Mas não era o caso da cama.

“Sim, 1,60 de altura.” Respondeu Renan enquanto o senhor olhava algo no computador, o velho com traços orientais ficou com o olhar vago por alguns instantes entre a checagem dos colchões. “Um e sessenta...” Sussurrou enquanto voltava a atenção. Renan olhou para a janela, o transito na BR já estava se intensificando. Ele olhou pro senhorzinho que estava um pouco absorto. Então a porta atrás da mesa se abriu sutilmente. Ele pode espiar um rosto parecido com o da garota que saiu a pouco olhando entre a porta semi-aberta, ela percebeu que tinha sido vista e recuou um pouco fechando um pouco a porta. Renan desviou o olhar. “Pai...” Ela chamou baixinho sem o vendedor perceber. “Pai...” Denovo. O senhor levantou o olhar, primeiro para o cliente, momentos depois se virou para a porta. “Sim? Filha.” Ela recuou porta adentro. O vendedor suspirou. “Só um instante senhor... Nós estamos com uns probleminhas hoje. Sinto muito, já volto.” Ele disse fechando os olhos e juntando as mãos. Renan assentiu enquanto o senhor sumia atrás da porta.

Renan se manteve quieto por um tempo, então ele ouviu alguma agitação atrás da porta. Ele só ouvia uma voz masculina, ora repreensiva ora lamentosa. Enquanto isso acontecia, ele ouviu alguém entrando pela porta. Se virou e viu a menina de mais cedo entrar enquanto escrevia algo no celular. Ela parou quando viu ele mas não esboçou reação. Ela olhou para porta e ele também para logo depois voltar o olhar para ela denovo. Ela parecia um pouco surpresa olhando para a porta, olhou para Renan denovo, guardou o celular e saiu pela porta.

Renan ficou imóvel por alguns momentos, olhou para a porta que agora estava silenciosa, levantou e saiu. Pulou alguns degraus da saída e alcançou a rua. Começou a andar em direção do seu carro.

Ele andou um pouco e parou em frente a um casal. A garota era a que ele tinha encontrado mais cedo, ela olhou para ele impassível. Eles ficaram em silencio por um instante então o garoto perguntou se havia algum problema.

“Não, ele é só um cara que meu pai...” Renan interrompeu enquanto pegava sua carteira. “Aqui ó, teus vinte reais.” Ele sacou duas notas de dez e estendeu a ela. Ela riu com desdém. “Tu acha que eu quero teu dinheiro?” O garoto tentou pegar o dinheiro. “Opa, eu aceito.” Mas Renan não entregou. “Tu não quer? Achei que tu gostaria de...” Ela assumiu mais desdém. “Sai daqui, não preciso do teu dinheiro. Tu acha que eu sou o que?” “Não quis ofender, só achei que tu queria... A! Foda-se você também.” Ele jogou o dinheiro no chão e virou enquanto o casal de jovens se entreolhavam.

Renan caminhou até o seu carro mas passou por ele e entrou em um venda logo adiante. Foi até o caixa e pediu por um maço de cigarros. “Qual?” “A...” Ele olhou para os que estavam acima do balcão. “Derby... Vermelho.” “Não tem.” A mulher respondeu. Ele bateu no acrílico onde ficavam os maços e onde tinha uma carteira de Derby vermelho. “Aqui.” “Esse é só amostra.” A balconista disse. “A, me vê qualquer um então.” E a mulher olhou para ele da maneira que só uma pessoa que vende cigarros pra quem nunca fumou na vida olharia.