"MORRO DO MORRO" - Conto “hum”
“Morro do morro”
Conto “hum”
Os “homi” e o tombo no escuro!
Sentei ali, o dia era frio, o vento batia minha face, me fazendo lembrar daquela “nêga” do samba no fim de semana, quando viu o molejo de meu corpo já surrado,decidida, não se afastou mais. De frente pra rua, observei o movimento, o vai e vem daquela gente mesquinha, donde nem bom dia eu ouvia. Traguei o cigarro amassado, o último do maço do amigo da banqueta do carteado, dei um gole na água ardente, fitei a guia que ali não existia, era manhã, e eu continuava na mesma entoada, feliz e conformado como o uivo do morro, sempre foi assim, desde que meus pretos velhos decidiram por subir, pois daqui, os “capitão do mato” não podiam silenciar o som dos atabaques, pelo menos aqui eu podia ser o que eu sempre fui, o cavalo de sentar praça.
Além da preta do samba, outras coisas eu ouvia e lembrava, meu coração e minha mente faziam isso, não me deixavam dormir como de sempre. Isso fazia minhas noites se tornarem madrugadas, as madrugadas virarem raiar do dia, e eu continuava de pé. Vezes perto de meu casebre, das outras nos boteco entorno do morro, vida sim, vida não. Em uma dessas caminhadas em meio à matina, ouvi o morro cantar, violão, atabaque, pandeiro, caxixi, pele de gato, vulgo tamborim. Ambos tremulavam sem medo, sem receio dos “home” arrancarem nossas raízes. Não posso dizer que havia um relaxo, o medo sempre era constante, a todo o momento, não era á toa que os “vapor” ficavam a beira da entrada, cada qual a seu modo, a observar o entra e sai daquela gente toda.
Uma noite, quando sentei a beira do meu casebre, só pra ver as contas no céu, vi que o ar havia mudado o vento não corria, a respiração não era ouvida, os bichos estavam agitados, gato, cachorro, grilo, rato, papagaio, carrapato no mato, dali eu não sai. Passaram-se horas, já era hora grande, acabou a bebida, acabou a comida, acabou a vida, todos dormiam, a negra escuridão abarcava o corpo cansado daquele povo todo. Eu,como eles, senti o peso do labor, resolvi me levantar e pestanar, mas persisti a soleira da porta, no banquinho do caboclo, pitei outra palha enrolada, adorava esse jogo de boca, o pra lá e pra cá do cigarro de fumo, como a minha vó, ao pitar o dela no fim do dia. Ela dizia que essa era a vantagem do pitar, espantar os mosquitos, nem pernilongos chegavam perto da Negra véia.
Sem demora o passar apressado de um mulato me atentou, distanciando-me do passado presente em meu peito, que agora afogava em medo, por que logo depois, mais outro “neginho” passou em disparada, carregando o fazedor de bum em mãos. Agora além do medo, o desespero me acometeu. Levantei rápido, deixei a garrafa do goró ali mesmo, tentei fechar a porta, em vão. Os “homi” subiram o morro, derrubaram as portas, deram uma benção em meu peito, fui ao solo. O gosto da dor correu meus lábios, o frigido ranger de dentes caçoou minha persistência em querer estar de pé, o “homi” encostou o fazedor de bum bem perto de minha têmpora, o frio cano acusou o seu desuso. A voz afobada com fedor de “cocada boa” sussurrou:
- Seu preto de merda! Cadê teu amigo? – com ardor de ódio.
- Senhor, seja bem – vindo ao morro, como posso ajudar-te? – eu de forma cortês.
- Não seja atrevido, cadê o “neginho” – o “homi” nervoso.
- Não sei do que se trata caro colega, aqui tem muito “neginho” – eu com a verdade.
- Estas de graça com o poder? Vai ficar de achincalhada, o “Chica da Silva” – ele racista.
- Me chamo Hidalgo senhor! A Chica é dona da bodega ao lado, talvez ali encontras o que desejas afiadamente... - eu debochadamente.
Ouvi apenas a dor de um metal frio sobre minha cabeça, pela primeira vez senti o tombo no escuro, infinita negridão, fria canalhice. Atordoado, vi que me levantaram de qualquer forma, fui arrastado para fora de meu pobre dormitório e prostrado com a face no barranco. Gritei de dor, com um cruzado que atingira meu rosto e uma bicuda no rim. Verti sangue de minhas entranhas, mesmo no escuro, vi o sangue vivo pulsar ao se derramar sobre o solo, enquanto os “homi” traziam mais de cinco “neguinho” que se alinharam forçadamente a minha direita. Abri um olho e vi os outros dois que haviam corrido minutos antes, quando a palha ainda não havia acabado, àquela hora, não sabia se existiria vida em mim, era a única coisa que eu pensava. O “homi” reconheceu-os de imediato, ouvi o engatilhar do fazedor de bum, nada mais me vinha à cabeça, elevei a mente aos meus orixás, puxei a guia, beijei-a com o clamor de Oxossi, a proteção de Ogum e o amor de Oxalá.
Ouvi o primeiro Bum, o da ponta, sem nada, caíra, sem se mover, como um monte de nada, a escuridão tomou-lhe a face, a sua alma tombou. Em seguida, sem temor, o segundo bum veio, alto e dolorido, outro corpo padeceu, sem luz, vi sua alma ser ceifada, sem preço, dó. Aguardei o terceiro, ele veio, com um pouco mais de atraso, mas velozmente mortal, uma azeitona certeira no lóbulo central, e saída esfacelar. E tudo parou, o silêncio se rompeu quando um dos “homi” disse:
- Ninguém viu nada, ninguém sabe de nada, esse último ai é pra que vosmicês vejam o quão sou capaz de fazer! – aos berros no fim.
- Claro, daqui nada sai – eu, amedrontado, mas tomando rédea da situação.
- Assim espero, pois de forma alguma espero não precisar voltar a este pardieiro – fitando os meus olhos, enquanto os outros eram levados para a entrada do morro.
Levantei com a dor, a vergonha e o medo misturados, ainda atordoado, sentei ao solo por não suportar, enquanto os “homi” desciam para a entrada do morro, eu me ajoelhei, e rezei, entoei o murmúrio do negro africano. Meu povo se aproximou, e lamuriou de mesma forma. Ali agora, era eu, Oxalá, pretos velhos, a entoar a dor daqueles tombados no escuro, chorei, rezei, sozinho. Infelizmente aquela não foi à primeira vez, mas sim, o meu primeiro tombo no escuro.