Leonor
O caracol deslizou lentamente, sobre a calçada , com sua casa ás costas. Agachada, ela riu , envolta na surpresa ; nunca imaginara aquele bicho capaz de qualquer tipo de movimento . Seria a primeira surpresa que a manhã trazia , com um sol meio morno e uma brisa gostosa , de fim de inverno ? As pessoas seguiam na sua pressa, cabeça baixa quem sabe , peso de tanta preocupação; antes ocupar-se que preocupar-se, descobrira há muitos anos . Na praça , o repuxo da fonte tentava pular mais longe e irrigar um gramado agonizante e pardacento de descaso ; sorriu , teria inventado uma nova cor ?
Pardo - descaso ; soava bonito , tinha personalidade , quem sabe , o nome não seria inspiração de Clarice Lispector ,um dia moradora daquela casa ali em frente ? Isso mesmo , naquele velho sobrado da esquina ,agora ocre e azul claro, portas ainda fechadas , num dia em plena gestação ?
Caminhou até a placa de bronze, que dizia que sim, Clarice morara ali mesmo , naquele sobrado de cores que brigavam entre si , porque não fora deixado em sossego, tinha a placa da moradora e uma placa de loja , daquelas grandes , luminosas , mais para cima, falando de venda de sapatos , que ela não precisava . Sentou num banco da praça ,sentiu um perfume antigo e familiar vindo do canteiro em frente . Tantas flores , de cheiro gostoso e sem nome , mas porque teria de ter um nome algo tão nobre e agradável ? Tudo tem exceção , flores também . A manhã promissora de um lindo dia , talvez igual ao primeiro dia do mundo , depois de criado , Deus repousando, na praia, pensando nos nomes para aquelas flores . O mar ,a praia, como estariam, naquela manhã ?
Ergueu -se do banco,caminhou na direção da avenida principal , esbarrando num canteiro de mirradas azaléias; alguém mostrou-lhe o ponto do ônibus que passava na praia.
Descobriu – se sem dinheiro algum , sem bolsa , sem lenço,sem documento – lembrou do riso e das gengivas de Caetano Veloso , aquele cabelão assanhado de alegria .
Pediu dinheiro á bela moça de bolsa e óculos escuros , viu-se nas lentes , uma velha senhora bem penteada , bem vestida , blusa de linho cara e branca, calça comprida preta, a mão lenhosa , estirada , a esmolar uma passagem de ônibus . A moça sorriu amarelo e foi tratar de sua vida ; atendeu-a o senhor idoso , suado e barrigudo , de
camisa desabotoada , que lhe passou dois reais e um lembrete de que idoso não pagava ônibus naquela cidade . Agradeceu , tomou o ônibus ,que rodou muitas ruas,até atingir a praia de Boa Viagem. Desceu na parada do Castelinho ; na dignidade mais leve que os dois reais poderiam lhe dar , comprou um sorvete e contemplou as pessoas suadas
correndo, transpirando o que parecia serem as últimas gotas de suor sobre a Terra ; velhos em cadeiras de roda , cães enormes competindo com os seus donos em porte arrogante e cara de poucos amigos; um grupo gracioso jogando vôlei , a jeunesse doreé em sua memória ; colocou rostos conhecidos naqueles belos estranhos , que não conheceram aquele bairro ainda um belo recanto de veraneio . Sentou , costas apoiadas num coqueiro, sentindo uma descomunal felicidade,com o apagar das recordações de quem era , de onde viera e onde iria colocar toda aquela plenitude , feita de sol ,areia e mar.