retratos da vida de alguém III
Quando o elevador chegou ao térreo, a velha estava desesperada. Saiu aos berros, com um camisolão rosa e com a bolsa em mãos. “Eu quero que alguém tome uma providência! Isso não vai ficar assim!”, gritava a velha. Humberto permanecera dentro do elevador, só observando. O porteiro olhava para ele, assustado. Estaria ele pensando que Humberto abusara daquela pobre senhora em pleno elevador? Muito improvável. Mas se ele fosse um maníaco? Um psicopata? Não, ele definitivamente não parecia um molestador de velhinhas. Estava mais para um esquisitão solitário que gostava de encher a cara e que ficava dias sem tomar banho. Apesar do cabelo curto, a barba estava sempre por fazer. E as olheiras lhe dava um aspecto envelhecido e a cara de quem está sempre de ressaca. Mas se enganava quem pensava assim (e quase todo mundo pensava assim). Humberto era sim um homem solitário, talvez por opção, talvez por falta de oportunidades, ou talvez porque as pessoas não valiam a pena para ele. Ou simplesmente ele preferia assim. Nem tudo tem um motivo. Banhos ele tomava. Claro que não era todo dia. Quando chegava muito cansado do trabalho, ia direto para a cama, pra levantar cedo no outro dia e ir trabalhar, sem banho mesmo. Ele não bebia, ao contrário do que aparentava. Não, ele não odiava bebida, e não era um religioso fanático que dizia que a bebida era uma obra de satanás. Ele nem tinha uma religião. Simplesmente era assim. Feliz? Ninguém diria, nem mesmo ele. A vida nunca foi um lugar muito agradável, convenhamos. E quando você mora em um prédio onde o elevador não funciona direito, a vizinha grita todos os dias com os filhos, e você tem no trabalho um chefe que você detesta com todas as forças, e o seu salário no final do mês só dá pra pagar as contas, seu nível de felicidade cai consideravelmente. E agora ainda tinha que aprender a conviver com o olhar que, certamente, aquele porteiro lhe lançaria toda vez que o encontrasse. Aquele olhar com um ar de: “será mesmo?”. Pouco importava tudo isso. O que pensam os outros faz parte de um mundo que nunca vamos conhecer.