A deusa da minha rua

"Minha rua é sem graça

Mas quando por ela passa

Seu vulto que me seduz

A ruazinha modesta

É uma paisagem de festa

É uma cascata de luz"

(Nelson Gonçalves, A deusa da minha rua)

Na minha rua, há uma deusa. Melhor, na minha rua existe uma musa. Prefiro dizer assim, senão ela descobre e já se sente com a autoestima lá em cima, o que pode não ser bom para um relacionamento. Contraditório, mas é verdade. Infelizmente, nunca falei com ela. Na verdade, já falei, mas foi um bom dia bem xoxo, daqueles que são ditos entre os dentes. Nem consegui perceber se ela ouviu ou se me respondeu. Já pensei em perguntar as horas, mas duvido muito que ela diria algo do tipo “hora de você me pegar pelo braço, me dar um beijo, me jogar nesse jardim e me fazer mulher”. Ela só diria as horas mesmo.

Fica complicado interagir com as pessoas na vida real. Ficaria estranho eu aparecer na frente dela com uma cartolina azul escrito “Quer ser minha amiga?”, até porque amizade não é bem o que eu desejo. Cutucá-la também seria inapropriado, imagina, numa dessas ou sou acusado de agressão – está aí a Lei Maria da Graça, ops, Maria da Penha – ou de assédio sexual. Dar uma nota quando ela passa, levantando uma plaquinha entre 8 ou 10, também não seria legal.

Já tentei descobrir detalhes da vida dela. Sei onde mora, por exemplo, é num prédio bem próximo ao meu. Sei o horário em que ela costuma chegar do trabalho. Porém, o melhor de tudo: sei a parte do dia em que ela sai para passear com o cachorro! Já tive vontade de chegar e perguntar “oi, o cachorrinho tem telefone”, mas, do jeito que sou, regido pela Lei de Smurf, acho que sairia algo do tipo “Oi, a cachorra tem telefone”. Eu acabaria apanhando, né. Certa vez, no lugar de falar “o namorado da minha mãe”, eu disse “a mãe do meu namorado”. Até hoje pairam dúvidas sobre minha sexualidade, ainda mais sendo integrante de um grupo de risco, que é o de professores de Português.

Outro dia, minhas perspectivas melhoraram. Vi um senhor de idade passeando na rua com um cachorro. Não, eu não me interessei por ele, mas tive uma ideia. Perguntei se eu poderia cumprimentar o cachorro – no caso seria um afago, não um beijo, até porque cães conseguem lamber o próprio ânus, logo, beijá-lo não seria higiênico -, ele disse que sim. Perguntei se o cachorro precisava caminhar muitas vezes ao dia, pois era um beagle, raça conhecida pela hiper-atividade. O velhinho me confirmou, dando quase uma palestra sobre o tema – isso que dá puxar assunto com um Sr de idade, especialista em puxar assunto por natureza. Assim, perguntei se ele poderia me alugar o cão alguns dias por semana, pois dessa forma poderia resolver a minha situação com a musa da rua.

Por quê? Oras, assim que a visse andando com o cãozinho dela, eu pegaria o beagle. Não, não estou achando que o meu cachorro de aluguel faria amizade com o dela e o adicionaria no Face, por exemplo. Também não pensei que combinaríamos de ir juntos ao cinema ou a algum barzinho com os animais, mas eu poderia ao menos descobrir o nome dela.

O velhinho aceitou o pedido de aluguel? Paradoxalmente, ele me deixou falando sozinho na rua.

Para solucionar minha situação, pensei que deveria ter me juntado aos ativistas que invadiram o Instituto Royal e resgataram de lá centenas de beagles. Só que não.

(...)

Um ano após o texto escrito e publicado, nada. Já mandei msg via Spotted e também publiquei na página do meu bairro no Facebook. Até enviaram o link de alguém que parece - muito - ser ela. Tomei coragem e mandei um "oi?". Mas ela não respondeu. Aí você me diz "Diogo, só isso que você mandou?". Claro. não sei qual seria a reação dela quando lesse "oi, eu te vejo com olhos de nerd que simula um passeio de mãos dadas no shopping".

Pensei também em imprimir várias páginas desse texto e colar em postes e árvores, mas acho - só acho - que ela não se sentiria bem com algo que mais parece um "procura-se vivo ou morto".

Para piorar, após mais de um ano, o mercado de pet shops ainda não se modernizou a ponto de lançar um serviço de aluguel de cachorros.