MELHOR QUE O MESTRE
Quando eu era criança, sempre que precisava cortar o cabelo, o meu pai me levava à Barbearia Alteza. Lá trabalhavam três senhores, que eram sócios no negócio: o primeiro era o seo Luiz, um homenzinho franzino, meio careca, com uns olhos muito fundos e escurecidos. O segundo era o seo José, um negro forte, de sorriso largo por baixo do bigode sempre muito bem aparado. E o último era o seo João, branco e gordo, de pouquíssima conversa (coisa rara nesse ramo), que era quem tirava a barba de meu pai enquanto um dos outros dois cortava o meu cabelo. Sentavam-me numa tábua que se apoiava sobre os braços da cadeira (assim minha cabeça ficava na altura certa e o barbeiro não precisava se inclinar sobre mim para fazer o serviço), me colocavam aquele manto branco com um velcro apertando a minha garganta, e eu ficava estático – depois que me disseram que o barbeiro cortou a orelha de um menino que não parava quieto – enquanto via os meus cachos rolando para o chão.
Não era raro aparecer por lá um outro senhor, de fala mansa, andar cansado, inseparável de seu chapéu de feltro preto. Sentava-se num dos banquinhos que ficavam atrás das cadeiras dos barbeiros, punha sua bengala entre as pernas e ficava observando o movimento da rua. Eu sempre o achei um tanto esquisito, a começar por seu nome: chamava-se Symphloriano, assim mesmo do jeito que estou escrevendo, com ipslon e pê-agá. Ele era amigo de infância do seo Luiz, e havia algo que os fez famosos na minha cidade e que os mantinha numa relação tanto de amizade quanto de rivalidade: o jogo de damas.
Diziam que os dois começaram a jogar damas ainda no tempo do grupo escolar (e isso devia ser antigo a beça). Desde então, ninguém jamais conseguiu ganhar deles; e o mais curioso era que, sendo adversários, nunca, nenhuma vez, mas nenhuma vez mesmo, um ganhou do outro: suas partidas sempre terminaram empatadas. Houve um campeonato de damas nos jogos abertos da cidade em que os dois (finalistas, claro) se recusaram a cumprir a regra do empate, e ficaram por dezesseis horas tentando liquidar com as damas alheias. Em vão. Resultado: não permitiram mais que eles se inscrevessem em campeonatos desta modalidade.
Obviamente, na barbearia do seo Luiz havia uma mesa, e sobre a mesa um tabuleiro, e sobre o tabuleiro os conjuntos de pedras claras e escuras. E vez ou outra, ele e o amigo-rival Symphloriano se sentavam ali para uma “partidinha”, o que era motivo para encher o estabelecimento de curiosos (afinal, aquela rixa era tão famosa na cidade que ninguém queria perder de ver o dia em que um vencesse o outro). Depois de jogadas espetaculares, de lances inacreditáveis, de pedras comidas e damas construídas, o resultado acabava sendo o que todo mundo já esperava: empate.
O tempo foi passando, eu fui crescendo, e a hegemonia dos dois no jogo perdurou ao longo dos anos. Foram inúmeros os desafiantes, sem jamais alguém conseguir vencer qualquer um deles.
Aconteceu, porém, que uma gripe mal curada evoluiu para uma pneumonia, e deixou a saúde do velho Symphloriano seriamente comprometida. Num dia nublado em que o vento frio fazia a garoa cair quase horizontalmente, veio a notícia pelo alto-falante da igreja de que ele havia falecido. Personagem praticamente folclórico da cidade, mesmo debaixo de chuva o seu enterro arrastou uma pequena multidão ao cemitério, e a comoção foi geral, inclusive do pequeno Ditinho, um engraxate da praça central que sempre estava entre aqueles curiosos que assistiam aos desafios de damas na barbearia. Ele chorou copiosamente acompanhando o cortejo.
Dias depois eu precisei aparar os cachos, e como de costume, fui até a Alteza. Estava lá o seo Luiz sentado num dos banquinhos, a mesa com o tabuleiro à sua frente, e ao vê-lo com o pensamento tão distante, imaginei que ele pudesse estar lembrando das partidas com o saudoso rival-amigo. Não quis incomodá-lo e me dirigi à cadeira do seo José, que veio com seu sorrisão habitual me vestir com aquela túnica branca, e enquanto eu me ajeitava no assento, ele batia insistentemente as lâminas da tesoura uma contra a outra, como se fosse preciso aquece-las para começar o serviço. Mais ao fundo, o seo João passava a navalha na barba ensaboada de um cliente.
Logo depois adentrou ao recinto o pequeno Ditinho. Meio ressabiado, deixou a caixa de engraxate no chão e se sentou diante do seo Luiz. Sem dizer nada, ficou olhando para as pedras dispersas sobre o tabuleiro. Aquela figura logo desfez os pensamentos longínquos do barbeiro, que então perguntou com certa rispidez na voz:
_Que é que tu quer, moleque?
Ditinho titubeou a princípio, pelo espelho vi suas bochechas ficarem ruborizadas, até que, meio engasgando, disse:
_Quero jogar dama com o senhor.
Seo Luiz franziu a testa.
_E eu lá tenho tempo pra perder com um pirralho que nem você? Some daqui, infeliz!
Fez menção de se levantar, só que o menino insistiu:
_Mas o senhor não tá atendendo ninguém. Não custa...
Ele então lhe lançou um olhar de desdém. Os outros, inclusive eu, sorrimos da ousadia do garoto, ao mesmo tempo em que nos surpreendemos quando ele emendou:
_Ou o senhor está com medo de perder?
Seo Luiz deu uma gargalhada.
_Perder pra quem? Pra você? Ora, deixa de conversa mole que eu tenho mais o que fazer – e se levantou do banquinho.
O Ditinho então mexeu com as pedras, arrumando-as para o início da partida.
_Eu deixo o senhor começar...
Escapou-me um sorriso dos lábios. Mas que moleque atrevido! Seo Luiz deve ter pensado o mesmo. Ele olhou para nós, balançou a cabeça e voltou a se sentar.
_Então tá. Quero ver até onde vai essa petulância...
Terminaram de ajeitar as pedras. De onde estava não podia ver o tabuleiro. Só consegui ver a impaciência nos gestos do velho barbeiro, e o olhar compenetrado do pequeno desafiante. Mas pouco tempo depois passei a perceber um certo ar de surpresa tomando conta do primeiro, e um aspecto triunfante aparecendo no semblante do segundo. Seo José parou por um instante o serviço e, olhando espantando para a mesa, disse:
_Virgem Maria, não é que o moleque cercou a sua dama, Luiz? Agora danou-se...
O menino, radiante, mexeu sua pedra para o golpe fatal. O barbeiro, vermelho de ódio, pegou as pedras e as jogou de volta ao tabuleiro.
_Essa não valeu. Eu me distraí e esse pivete se aproveitou. Agora vai ser pra valer.
Vendo o acontecido, o homem ao meu lado saiu com a barba do jeito que estava, e correu avisar na praça:
_Gente, venham ver, que o seo Luiz está perdendo na dama!
Logo uma multidão se aglomerou diante da barbearia. O seo José parou o serviço e eu, com o cabelo meio cortado, meio sem cortar, virei a cadeira para trás e, como todos os outros, passei a acompanhar atentamente a partida que se desenvolvia. Era nítida a aflição que se apoderava do barbeiro a cada lance conduzido por seu pequeno adversário, que demonstrava uma inesperada habilidade e técnica própria de um mestre. Todo mundo ficou pasmado quando, depois de comer quatro pedras seguidas, ele indicou a sua no lado oposto do tabuleiro e falou com voz firme:
_Dama.
Explodindo de raiva, seo Luiz nada pode fazer a não ser pôr outra pedra sobre aquela que o dedo fino do rival estava mostrando. Foi então uma seqüência de lances geniais do garoto, que por fim deixou o tabuleiro sem nenhuma pedra clara. E diante dos olhos incrédulos da multidão, aconteceu o que parecia impossível: o seo Luiz tinha perdido um jogo de damas.
Mas ele não aceitou em bom termo aquela derrota inusitada. Meteu a mão no tabuleiro, tombou a mesa, pinchou longe as pedras e gritou, encolerizado:
_Sai da minha barbearia, sua peste. Suma daqui!
Voltou-se para a multidão estupefata e bradou:
_Sumam todos vocês, corja dos infernos! Sumam!
Como ninguém arredou o pé, ele mesmo abriu caminho pela porta, e saiu para a rua pisando duro.
As pessoas não acreditavam no que havia acontecido. Eu então me aproximei do pequeno engraxate e perguntei:
_Onde você aprendeu a jogar damas desse jeito, Ditinho?
Seus olhos, que fitavam o tabuleiro jogado para debaixo da cadeira do barbeiro, voltaram-se para minha direção. Pude perceber toda sua emoção quando me respondeu:
_Na casa do seo Symphloriano.
E aqueles olhinhos ficaram marejados de lágrimas quando concluiu:
_Foi ele que me ensinou...