A Hora Marcada

Quando meu avô veio morar em minha casa, mudou toda nossa rotina. Ele já estava com 72 anos e carregava o peso de todos os anos de trabalho árduo da roça. O resultado de sua vida de luta foi ter muitos problemas de saúde. Como não procurava por recursos médicos, acabou ficando debilitado.

Passado um ano, começamos a perceber alterações em seu comportamento. Notamos pequenas perdas de memória e insônias constantes. Nunca me esqueço do dia em que, logo após o almoço, escutamos uns berros: “Não tem comida nessa casa, não?” “Que horas que sai o almoço?” Ficamos todos abismados. Questionávamos: “Ele não lembra que já almoçou?!” Então servimos a comida novamente para ele, que devorou tudo em questões de minutos.

Meu pai, preocupado, achou melhor levá-lo ao médico. Foi quando descobrimos que ele estava com Alzheimer. Foi um choque para nós! O médico nos explicou que esta doença se manifesta através do comprometimento da memória recente. Conforme ela vai se agravando, o paciente regride mentalmente e volta a agir como criança. Por isso meu avô tinha memórias da infância e não lembrava se tinha almoçado naquele dia.

Certa manhã, ele me chamou em seu quarto e pediu que eu comprasse para ele um relógio novo, daqueles de bolso antigos, que eram presos por uma corrente. Questionei-o sobre o seu relógio de pulso que estava usando. Respondeu-me que já não prestava mais. Percebi que o relógio havia parado e então pedi ao meu pai que comprasse um do jeito que ele queria. Quando meu pai chegou com o relógio, foi uma alegria para meu avô, parecia uma criança. Várias vezes em que fomos espiá-lo em seu quarto, pegamos ele sentado na cama admirando aquele relógio dourado reluzente. Ele virava para um lado e para o outro, balançando a corrente. Cuidava e guardava como um tesouro. Só dormia com o ele debaixo do travesseiro. O velho relógio de pulso ficou guardado em uma gaveta no balcão da cozinha

Meses depois, estávamos eu e minha mãe na cozinha fazendo o jantar. Por volta das 18h30min, algo começou a apitar como se fosse um despertador. Reviramos a cozinha, abrindo todas as portas dos armários, mas não achávamos de onde vinha aquele som. Até que abri uma dessas gavetas em que se guarda de tudo um pouco. E lá estava o velho relógio do vovô. Era dele que saía aquele apito. “Mas era impossível!” pensávamos. Não tinha como apitar, era um relógio de pulso comum. Com surpresa vimos que ele estava funcionando novamente. Não entendemos nada.

No dia seguinte, peguei o relógio e percebi que ele havia parado novamente. Marcava 21h15min. Por curiosidade anotei essa hora em um caderno. Guardei-o na gaveta e lá ficou esquecido.

E tudo caminhava tranquilo. Uma noite meu avô até acordou pedindo comida. Para nossa alegria, ele comeu quatro pratos de sopa. Minha mãe e eu ficamos animadas. Mas em seguida ele sentiu vontade de ir ao banheiro. E ali, nos braços do meu pai, ele desmaiou. Logo se recuperou. Por prevenção, meus pais resolveram levá-lo ao hospital.

Como não fui ao hospital, liguei em seguida para ter notícias. Minha mãe atendeu ao telefone ao lado do meu avô que, nessa altura, já usava balão de oxigênio. Meu avô pediu o celular para minha mãe. Ele nunca havia falado no telefone, naquele dia ele quis falar comigo: “Oi, minha netinha, acho que estou no circo”. “Tenho até um nariz de palhaço. “Que legal vô” – foi a única coisa que consegui falar. Um grande aperto no coração tomou conta de mim naquela hora.

À noite fui visitá-lo, mas não pude vê-lo porque ele estava na UTI. Foi um grande susto. Pensava que não era nada grave. Minha mãe me explicou que o desmaio que ele teve em casa foi um enfarto. Resolvi ir à capela do hospital para rezar, pois estava muito angustiada. Lá pedi misericórdia pelo seu sofrimento de meu avô. Quando retornei, encontrei meu pai e minha mãe abraçados e chorando muito. Perdi o chão! Meu avô acabara de falecer. Que tristeza perder meu companheiro querido! Meu avozinho!

Com muita tristeza no coração, tive que ficar no hospital para pegar o atestado. Quando o recebi, tinha todas as descrições da morte. Em razão dos pulmões estarem fracos, o coração não recebia oxigênio. Isso fez com que ele inchasse, causando a parada cardíaca. De tudo o que estava escrito, o que mais me chamou a atenção foi à hora do óbito: 21h15min. Lembrei imediatamente do velho relógio esquecido na gaveta.

Jéssica Kur Fuchs
Enviado por Jéssica Kur Fuchs em 30/04/2013
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