O Último Salvamento

A psicóloga preparava-se para entrevistar os últimos candidatos à escola de bombeiros daquela turma. Um nome chamou-lhe a atenção, trazendo à tona lembranças adormecidas. Ela separou a ficha do candidato, olhou para a foto, tentando reconhecer nele o menino que aparecia nos jornais de seis anos atrás, mas não teve sucesso. Decidiu então deixá-lo por último.

Após a rotineira entrevista dos muitos candidatos, finalmente só restava um, aquele que lhe trouxera de volta dolorosas lembranças. Respirou fundo e o chamou.

- Sente-se – disse ela, indicando uma cadeira quando ele entrou. Ela o observou detidamente enquanto ele se acomodava. Nenhum sinal de nervosismo, a não ser aqueles naturais de quem está sendo submetido a uma prova.

Aos poucos as imagens do passado mostradas nos jornais iam ficando mais nítidas, e ela foi tendo mais certeza que era a mesma pessoa. Na época apenas um menino de treze anos, mas os traços eram inconfundíveis.

Após o preenchimento dos formulários, a psicóloga perguntou ao rapaz:

- Então, meu jovem, por que você quer ser um bombeiro?

- Eu… – o jovem hesitou – não sei bem como começar, é uma história longa.

A psicóloga percebeu o nervosismo que se instalou no rapaz.

- Conte-me tudo. Não tenha pressa. Nós temos tempo.

O rapaz iniciou a história, e logo nas primeiras palavras as lembranças de seis anos atrás vieram com força, vívidas. Inúmeros artigos nos jornais, entrevistas, matérias televisivas, tudo misturava-se com a narrativa do candidato, remontando aqueles acontecimentos trágicos.

***

Logo nos primeiros dias do outono a capital de São Paulo era castigada por chuvas intensas, fazendo os rios transbordarem, já saturados pelas chuvas do verão.

Naquele dia a tempestade tinha sido repentina, e o rio Tamanduateí transbordara em alguns pontos, inundando as vias marginais. O Parque Dom Pedro, no centro da cidade tinha se transformado em uma imensa lagoa em poucos minutos, surpreendendo e ilhando os pedestres nos pontos mais elevados.

Um pequeno grupo estava ilhado às margens do rio, num trecho de calçada mais elevado que os demais. Eram seis ou sete pessoas, entre elas um menino de treze anos. Depois de mais de meia hora de chuva torrencial, finalmente parecia que iria haver uma trégua. O rio, naquele ponto estava prestes a transbordar. As águas que desciam pelas ruas desaguavam no rio, em correntezas perigosas. O pequeno grupo de pessoas apoiava-se mutuamente, esperando as águas baixarem para tentarem se safar, indo para os pontos mais altos. O trânsito estava totalmente parado, o caos estava instalado no coração da cidade.

Finalmente um homem aventurou-se a atravessar a correnteza, e conseguiu chegar do outro lado, logo seguido por uma mulher. O garoto tentou em seguida, porém mal deu três passos, um pedaço da calçada cedeu, jogando- o no rio.

O desespero tomou conta das pessoas, que não sabiam o que fazer, vendo o menino ser arrastado pela turbulência das águas, até que um homem que estava no grupo, atravessou a água e correu até a ponte, jogando-se no rio. Conseguiu alcançar o menino que se debatia, e aos poucos foi se desviando para a margem, conseguindo agarrar-se a uma ponta de ferro saliente, uns cem metros à frente. Com uma mão segurava-se no ferro, e com a outra mantinha fora d’água a cabeça do menino, que já estava no limite de suas forças.

Demorou cerca de quarenta minutos para uma guarnição do corpo de bombeiros chegar. Junto com os bombeiros, chegaram os repórteres, em busca de sensacionalismos. Um deles conseguiu posicionar uma câmera que focalizava precisamente os dois náufragos.

Uma corda foi estendida, uma ponta amarrada na viatura, a outra lançada ao rio. Por ela desceu um dos bombeiros, que depois de algum esforço, conseguiu aproximar-se dos dois em risco. A turbulência da correnteza estava muito perigosa, arrastando todo o lixo que encontrava nas margens. Demorou ainda alguns minutos para segurar com firmeza o menino. Quando estava pronto para içá-lo, o bombeiro reconheceu o homem. Era um colega bombeiro recentemente aposentado, com quem trabalhara alguns anos atrás.

- Aguenta firme, companheiro. Já volto para buscá-lo.

O outro assentiu. Os bombeiros que estavam em cima começaram a puxar lentamente. Era uma operação delicada, pois por um trecho teriam de passar muito próximo à correnteza. Finalmente o menino foi deixado em segurança nas margens do rio. O bombeiro imediatamente iniciou a descida, para resgatar seu colega. A correnteza continuava forte, e cada vez mais lixo vinha junto com a água. Quando já estava quase alcançando o colega, um resto de sofá que vinha flutuando, chocou-se contra ele e o lançou às águas. Mal conseguiu segurar-se na corda. O pedaço de sofá, porém, atingiu a mão do outro, fazendo-o soltar-se da ponta de ferro. A água rapidamente o envolveu, levando-o na turbulência. O bombeiro desesperou-se, mas nada podia fazer. Seus colegas o puxaram. Outros ainda correram à frente, margeado o rio, na esperança de ver para onde o homem estava sendo levado. Em vão. Ele havia desaparecido nas águas.

Enquanto isso a imprensa explorava o alvoroço formado. Uns tentaram entrevistar o rapaz, que, confuso, não sabia o que responder e, depois de alguns minutos desmaiou de exaustão. O bombeiro que o havia socorrido estava inconformado por não ter conseguido resgatar seu companheiro, e foi levado a um lugar isolado pelos seus colegas. O povo, que parecia ter-se multiplicado, ao contrário, alimentava a imprensa com múltiplas versões dos acontecimentos. As imagens captadas durante o salvamento já estavam sendo divulgadas ao vivo pelas emissoras de televisão.

Somente dois dias depois o corpo do bombeiro aposentado foi encontrado, quilômetros depois, encalhado numa das margens do rio Tietê.

***

Quando fez uma pausa na narrativa, uma lágrima desceu do olho do rapaz, que disfarçadamente a secou. Ao mesmo tempo uma lágrima desceu pelo rosto da psicóloga, mas o rapaz não percebeu, pois estava neste momento olhando para baixo.

Depois, ele completou:

- Eu fiquei alguns dias num hospital, e fiquei sabendo de toda a história dias depois. Recebi a visita do bombeiro que me resgatou, e ele me contou quem era o homem que me salvara. Na verdade fui salvo duas vezes naquele dia, por dois bombeiros. E é por isso, doutora, que quero ser bombeiro. Devo a eles minha vida, e um deles morreu por mim. Um herói. Quero ser como ele.

A psicóloga respirou fundo, controlou a voz.

- Quer ser bombeiro para ser um herói?

- Não é bem isso, é que acho que uma função gratificante. Mesmo que não salvem vidas, que não morram pelos outros, no dia a dia sempre estão ajudando pessoas. É uma profissão que vale a pena.

- Bem, acho que basta…

O rapaz olhou indeciso. Percebendo a insegurança do rapaz, ela acrescentou:

- Fique tranquilo. Você tem uma ótima pontuação, e não há nada que o impeça de ser classificado. Desejo-lhe boa sorte, e acredite nos seus sonhos.

O rapaz despediu-se e saiu satisfeito. A psicóloga organizou sua papelada, preencheu os últimos relatórios e encerrou o expediente.

À noite, já em casa, depois de tomar um banho, a psicóloga abriu um arquivo. Folheou detidamente cada um dos recortes de jornais e revistas que falavam daquela ocorrência, e que de alguma forma mantinha viva a memória de seu pai.

Seu pai, que salvara um menino que hoje estava prestes a se tornar um bombeiro, e iria seguir os passos de quem considerava um herói.

Seu pai, que deixara um vácuo na sua vida, difícil de preencher. Ela por anos questionara inconformada a fatalidade que tinha sido aquele salvamento. Ele, já aposentado, depois de trinta anos ajudando pessoas, perdera a vida salvando um menino desconhecido. Quantas noites chorara com a lembrança dele, sempre sorridente e confiante.

Nesta noite, na escuridão de seu quarto, mais uma vez ela chorou, no entanto, estava aliviada. A última vida salva por seu pai iria valer a pena. Quando finalmente adormeceu, estava em paz. Finalmente entendera que o sacrifício dele não tinha sido em vão.

*