Aposta do cemitério 2ª parte

Continuação da 1ª parte

Covarde!…Covarde!…Covarde, era a palavra ignóbil que o perseguiria para todo sempre. Covarde, nunca! Iria até onde seus sentidos o permitissem. Só pedia que não desmaiasse de pavor, porque, em se recompondo, continuaria.

Gritava palavras de encorajamento em surdina, recorrendo a uma réstia de lucidez do seu subconsciente. «Anda! nada te impede! Então, onde está a tua coragem? Vamos! Não passa de um muro, para todos os efeitos».

Um pouco mais encorajado, trepou com a sensação que mil mãos se opunham à escalada.

Encarrapitado no topo do muro olhava lá para baixo, a escuridão junto ao cipreste impedia-o ver o chão, mais à frente, sombras difusas espalhavam-se pelo chão prestando às cruzes o aspecto de garras apontadas ao céu prontas a agarrar o primeiro que por elas passasse.

Uma nuvem escureceu momentaneamente todo o cemitério, tinha no entanto já agarrado a pernada do cipreste por onde desceria e subiria. Estava ainda húmido da chuvada que caíra durante o dia. Com todo o cuidado, empoleirou-se no outro ramo mais abaixo e preparou-se para saltar. Ainda que a tremer, já estava na parte de dentro, bastava agora dar o pequeno salto até ao solo, pegar na chapa com o número da campa e regressar. Deitou um último olhar para o princípio das casas da aldeia e reparou na luz de uma lanterna que avançava na sua direcção. Eram eles que lá vinham verificar a coragem dele. Agora sim, à vista da aproximação da malta a coragem voltou e deixou-se cair.

Cercas de buxo formavam um corredor, delimitando o acesso às campas. No meio, uma mesa de pedra, servia de apoio na abertura das urnas, numa última visão dos entes queridos. Em frente, uma pequena capela, ladeada por jazigos das famílias importantes da aldeia.

António, já ouvia as vozes da malta que se aproximavam. Perscrutou os cantos iluminados pelo luar, na procura da chapa numerada, no entanto não viu nada. Mais ao centro - reparou num monte de terra, proveniente do começo de uma nova cova ainda a meio. As ferramentas ao lado - indicavam que tinha sido abandonada, talvez, pela chuvada desse dia.

Para lá se dirigiu no preciso momento em que uma nuvem obscurecia todo o cemitério. Às escuras, continuou quando tropeçou numa pá. Na aflição ainda deus dois passos em frente tentando equilibrar-se, quando sente que o chão lhe fugia, acabando no buraco que por sorte era pouco profundo.

O terror que o invadiu era indescritível. A aflição de se ver na cova deu-lhe uma energia desesperada, com os braços de fora tentava agarrar-se a qualquer coisa que o ajudasse a subir. As mãos em forma de garras, esgadanhavam em volta em grande frenesim e tudo arrastavam, na ânsia de encontrar algo firme que o ajudasse a subir. Vinha terra e torrões, a pá que o desequilibrara também deslizou para dentro, o que lhe pareceu uma corda também ele puxou, levando de seguida com um balde na cabeça, derramando sobre ele o conteúdo estranho, dissolvido durante a chuvada.

A rapaziada ao verem o António a afastar-se em direcção ao cemitério, ficaram a tecer comentários, uns admirando-lhe a coragem, outros a garantir que ele nem sequer chegaria à entrada do cemitério. Mas todos eles ficaram apreensivos, quando alguém se lembrou duma história, contada de boca em boca pelos antigos. De um homem que fez uma aposta de trazer um objecto do cemitério, quando estava quase na saída a capa prendeu-se-lhe na haste de uma cruz, ele julgando que era uma alma do outro mundo que o puxava, morreu fulminado com um ataque.

O mais preocupado era o Aníbal. Desde de criança habituado aos rituais dos funerais e conhecedor dos medos do sobrenatural que as pessoas tinham.

Temendo uma desgraça, convenceu a malta a irem ao encontro do António ao cemitério. Munidos de uma lanterna apesar de estar luar, para lá se dirigiram.

- É malta! Vamos todos em silêncio para não o assustarmos.

Pé ante pé, aproximaram-se do portão do cemitério. Espreitaram e nada do António.

- Aconteceu alguma desgraça para ele não se ver. - Sussurra o Aníbal enquanto abria o portão, com a chave que tirou debaixo de uma pedra. Entraram receosos, atrás do Aníbal.

António, sentiu aquele dilúvio branco com odor a cal, a escorrer-lhe pela cara abaixo. Tinha instintivamente fechado os olhos. Agora, ao abri-los, sentiu um ardume e reparou que estava todo branco de cal. Com a dor nos olhos cada vez maior, apoiou se na pá e consegui trepar para fora da cova, soltando um urro de dor que ecoou no silencio da noite como um trovão, fazendo esvoaçar uma coruja do topo da capela.

A malta a contra gosto, seguia atrás do Aníbal, quando ele estacou de repente, olhando para a cova que o pai tinha começado a abrir. Uns sons esquisitos ouviam-se, como se alguém estivesse a esgadanhar. Estarrecidos, viram de súbito a emergir da cova um vulto de branco que deu um urro de tolher o mais valente. Instalou-se o pânico nas hostes, quando alguém gritou a tremer:

- É...o..fan..tasma do António.

O António com os olhos a queimar rugia;

- Venham cá… Ajudem-me!.. Ajudem-me.

Era demais para aquelas almas crentes no além e pior ficaram quando viram o «fantasma» do António, a correr de braços abertos para eles, berrando. Em pânico, desataram a fugir sem sequer olhar para trás, com o António sobre eles clamando por ajuda.

Aníbal em fuga com os demais, lembrou-se olhar para trás e de repente para sorte do António, fez se luz na sua mente. Parou e esperou pelo amigo e verificou o que os tinha assustado, era cal derramada.

- Porra pá! Pregaste-nos cá um cagaço.

Ali perto corria um regato, onde lavou os olhos do António que se contorcia com dores. Já com a cara lavada e sem dores, António contou-lhe as peripécias, desde que saiu para o cemitério e a queda na cova.

Depois de tudo esclarecido, uma sonora gargalhada ecoou naquela noite dada pelo Aníbal e secundada pelo António, antevendo a cara da malta, quando o António fosse reclamar o prémio da aposta.

Lorde
Enviado por Lorde em 25/04/2013
Reeditado em 25/04/2013
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