Aposta do cemitério.

- Dizem que o Armandinho ficou assim maluco, depois de dançar com as bruxas… e há quem diga que quando morrer, a sua alma ficará eternamente a atormentar quem por lá passar.

- Ó Santo Deus!.. Qual bruxas, qual carapuça. Balelas! Isso não passa de balelas. Então e vocês não acham que se isso fosse verdade, nós já não teríamos visto? Eu cá nunca vi nem não conheço ninguém que tivesse visto.

- Porque se calhar, tu nunca passaste num cruzamento à meia-noite em noite de lua cheia.

- É claro que não. – Respondeu o António. – Até porque, a essa hora estou a dormir ou na associação a ver televisão.

- Ah pois… desculpas.

O riso zombeteiro de alguns dos rapazes, teve o condão de enervar o António e fez com que o Aníbal tomasse a sua defesa.

- Não lhes ligues! É tudo uma cambada de medricas.

- Tu falas bem, já que és filho do coveiro; habituado a caixões e a mortes …deve ter algum pacto com o demónio. – Responde um rapaz mais velho, conhecido como o Chico andorinha.

- Tolices!...Tolices é o que tens na tua cabeça oca; então pelo facto de o meu pai ser coveiro é porventura diferente das outras pessoas? Se calhar é por ele ser coveiro que é muito mais temente a Deus do que muitas pessoas que o dizem ser.

- Não te chateies. - Rematou o António, apoiando agora o Aníbal. – Eles são capazes de dizer que viram coisas, sem nunca as ter visto.

- Olha cá ó meu espertinho! – Interveio o Zé chiquelinho, meio agastado. – Todos os que aqui estão - conheceram o meu avô que se finou no ano passado. Contava ele, que uma noite passou à porta do cemitério e como a porta estava entreaberta lembrou-se de rezar na campa do pai que tinha morrido uma semana antes. Ajoelhou-se para rezar, de súbito ouviu um estrondo e viu chamas azuladas em cima da campa. Assustado, fugiu com as chamas a persegui-lo. E sabem o que era? Sabem?.. Era o espírito do pai, a pedir que ele mandasse rezar mais missas à sua alma.

- Qual espírito, qual carapuça!.. Era fogo-fátuo com certeza e não o espírito do teu bisavô, como julgas.

- O que é isso de fogo-fátuo? - Perguntou o Zé chiquelinho.

- É a explosão de uma espécie de gás, com uma cor azulada que pode ser avistada esporadicamente por segundos em cemitérios e pântanos, resultante da decomposição de seres vivos: plantas e animais. - Respondeu o António.

- Isso é verdade! O meu pai já me contou isso mesmo. – Remata o Aníbal.

- Está bem, mas e o fogo que veio atrás do meu avô?

- Isso dever-se-ia à deslocação de ar, provocado pela fuga do teu avô. - Enfatizou o António.

O silêncio reinante aludia o respeito que António granjeou naquele momento com a explicação. - «Abençoado livro» - pensou.

- Quer se dizer: então tu não acreditas em bruxas, espíritos, fantasmas e almas do outro mundo? – Atacou o Chico andorinha.

- Mas é claro que não. – Respondeu convicto o António, ainda a sorver aqueles momentos de glória.

- Aí seu valente!.. mas se calhar essa tua cagança, abandonava-te ao pé do cemitério.

Encurralado pela ironia do Chico andorinha, António arriscou. – Não tenho medo de cemitério nenhum.

- Mas e de noite?

- Nem de noite.

- Olha!.. Garganta! Garganta vejo eu muita. – Atacou o Chico andorinha, batendo com a palma da mão na maçã-de-adão.

Sem se aperceber, António estava a deixar-se encaminhar para um beco sem saída. Restava-lhe agora, enfrentar o desafio dissimulado ou recusar, o que ia contra o que convictamente tinha dito. Então num rasgo de coragem ou de loucura disse:

- O que é que apostas em como eu sou capaz de ir agora ao cemitério.

Um murmúrio de espanto, ecoou entre a maralha, perante este corajoso desafio.

- Aposto a minha bicicleta. – Disse o Chico andorinha com ar trocista.

- Tá apostado, apesar de ela não passar de um chaço velho. – Respondeu o António com desdém.

Orgulhosamente, António encaminhou-se em direcção ao cemitério, ouvindo ainda atrás de si. – Não te esqueças! Tens que trazer a chapa numerada duma campa, como prova.

- Está bem. – Gritou já de longe, o António.

As sombras que o luar ocasionava, arrastavam-lhe o olhar receoso para os locais mais obscurecidos, tentando perscrutar se algo de anormal se escondia. Um esvoaçar repentino, quedou-o subitamente estarrecido. Gotas de suor frio cobriam-lhe a testa, o coração batia desenfreado, as pernas recusam-se-lhe a obedecer, mas tinha que prosseguir, desse por onde desse.

Doze badaladas ecoaram no sino da igreja, sobressaltando-o uma vez mais. Meia-noite e ele ali feito parvo, já sem a coragem que o empurrara para aquela situação. Quase que arrastando os pés, lá chegou finalmente à entrada do cemitério. Ainda havia que transpor o muro e descer pelo cipreste, algo que, de dia o faria com uma perna às costas, agora sentia-o muito mais alto, de uma altura que nem com uma escada o transporia.

O som lúgubre de uma coruja acentuou o ar tétrico que o envolvia. Paralisado, sentia que dali não se conseguia mexer, tudo nele tremia. Um líquido quente, deslizando pelas pernas abaixo, acordou-o momentaneamente.

Sentia-se rendido. Maldita a hora em que entrara naquela discussão com a malta e assumira a defesa dos não crentes, na controvérsia daquelas patranhas. Sem dar por isso vira se envolvido na maldita aposta que o atirara para semelhante aventura. Que fazer? O instinto instigava-o a regressar, mas o orgulho indiferente ao seu terror mantinha-o colado ao chão. Retroceder? Isso nunca. Ou executava a tarefa ou seria o alvo da risota dos seus iguais, isso na melhor das hipóteses, porque o gozo e o descrédito, era vergonha a que nunca se sujeitaria. Seria apontado como um covarde.

Continua na segunda parte.

Lorde
Enviado por Lorde em 25/04/2013
Reeditado em 25/05/2014
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