Decepção

Sempre acreditei que o convívio com quem não possui os mesmos ideais que nós e que vive o seu dia a dia na mais pura mediocridade, não se envolvendo nos assuntos do mundo que requerem meditação e iniciativa só faz com que estacionemos nossa evolução, vendo passar o barco da vida, levando todas as oportunidades que verdadeiramente acrescentam valor. Assim poderia ter sido comigo se não tivesse enveredado por outros caminhos. Se me salvei foi por pura intuição, mas ao mesmo tempo por acreditar que podemos chegar muito mais longe se nos decidirmos a isto e não retrocedermos jamais. Devo o que sou hoje aos que me apoiaram na jornada, não permitindo que eu sucumbisse, mas especialmente à minha vontade e, determinação.

Quanto às más companhias, escapei delas muito cedo e não nego que muito contrariado, também. Eu adorava aquela existência de parasitismo. Se tinha fé em alguma coisa não era em Deus ou no bem, mas na prevalência daquele meu estado indigno. Achava que a paciência das pessoas que conviviam comigo iria durar para sempre e que eu poderia continuar sugando-as o tempo inteiro. Até que parei dentro de um reformatório, delatado por uma das que não aguentaram por muito tempo a minha audácia. Eu e mais dois moleques cansamo-nos de invadir a pequena loja de doces de sua vizinha e levar o que quiséssemos; não usávamos armas e nem precisávamos. Como era um casal de velhos e visássemos sempre os horários em que estivessem sozinhos, não reagiam com medo e, assim, aproveitávamos, saciando-nos à vontade e carregando o que nos aprouvesse. Preveníamos sempre que acabaríamos com a sua raça caso mencionassem a alguém o que fazíamos ou se nos entregassem à polícia.

Após uma de nossas ações saímos de sua loja direto para a estação de trem. Era nosso hábito saltar o muro e viajar de graça, devorando tudo que havíamos saqueado. Uma amiga do casal, vendo-nos saltar para dentro da estação, reconheceu-nos e denunciou-nos aos guardas. Estes, vendo o que carregávamos juntou, ao delito que acabáramos de praticar, mais esta suspeita e encaminhou-nos a uma delegacia de menores. Com a presença dos nossos responsáveis fomos liberados, mas devidamente registrados como arruaceiros, o que causou em minha mãe tristeza e apreensão; contudo, não me corrigi.

Causava-me nojo e revolta saber que tive um pai alcoólatra e violento dentro de casa. Por ser, na época, uma criança não tenho recordações das surras que mamãe levava constantemente. Contudo, trago em meu subconsciente o trauma daqueles dias infernais que passamos dentro de casa. Não sei se minha conduta posterior teve a ver com o que sofri na infância. O certo é que sentia, no fundo da alma, que um dia superaria aquela fase. Meu pai desapareceu de nossas vidas para a nossa felicidade; sequer saberia dizer se ainda vive. Foi um período difícil em que tive que trabalhar para ajudar minha mãe; mas isto foi bem mais tarde, depois que comecei a me corrigir.

Não me lembro, mas posso fazer ideia do seu sofrimento e de sua luta para me alimentar e sustentar a casa quando meu pai nos abandonou nos meus quatro anos de idade. Tenho várias recordações de mamãe; de sua figura magra debruçada sobre as panelas vazias, derramando lágrimas de fome e de desespero por não ter conseguido a refeição, mas, ao mesmo tempo, feliz por me ver nutrido, posto que o leite nunca me deixasse faltar. No entanto, não prestei para nada dos oito aos treze anos e tudo pelo egoísmo de querer saber do meu pai e achar que ela mentia para mim ao afirmar que desconhecia totalmente o seu paradeiro. Revoltei-me por isso e caí no mundo que a porta da rua tem para oferecer.

Por causa da minha rebeldia os castigos eram constantes. Jamais ergueu a mão para me dar uma tapa, pois tinha consciência das consequências que este ato pode desencadear; sentira isto em sua própria pele. No entanto, proibia-me de pisar a rua por dias sem conta; tirava-me a televisão e meus passatempos preferidos. À minha disposição nada mais do que livros, que na época eu detestava. Porém, por não haver escolha, era com eles que me distraía para ver o tempo passar. Até que as mensagens de todos aqueles livros penetrassem em meu espirito aprontei muito, assim que coloquei meus pés para fora de casa e conheci o mundo.

Eu tinha onze anos quando dormi fora de casa pela primeira vez. Não existe amizade para quem vive sem o abrigo de um teto ou a proteção de uma família; só interesses egoísticos. Aprendi isso logo de saída e nunca mais esqueci. Foi o que me ajudou a sair do inferno.

Roubei, cheirei cola, experimentei maconha, a droga da época e fui parar, finalmente, em um internato para menores. Fugi por duas vezes. Na terceira, já próximo de completar treze anos, sosseguei; ganhei prêmio de conduta e bom comportamento e reencontrei minha mãe. Foi quando minha vida começou a mudar. Caí, por iniciativa dela, dentro de um colégio de padres e, estudando a valer, recuperei o tempo perdido.

Aos vinte e dois anos, nove de vida reclusa e dedicação total a minha evolução, achei-me em tempo de enfrentar a vida prática, embrenhando-me na sociedade, e aprender com os homens. Mas, como me decepcionei! O materialismo imperava a minha volta, tudo girava em torno dos interesses individualistas. Os que se mostravam dispostos a ajudar a sociedade faziam-no visando um retorno que os projetasse ainda mais no mundo dos seus negócios.

- Qual a sua verdadeira intenção dentro da nossa empresa? – perguntou-me um dos presidentes a quem ofereci meus préstimos.

- Desejo levar aos seus funcionários um conhecimento baseado em princípios ecumênicos. Desejo que eles transcendam os interesses meramente financeiros e pensem, verdadeiramente, na felicidade da clientela, deixando o lucro para segundo plano; eles virão como consequência da lealdade de todos.

- E como pretende conseguir tal objetivo?

- Ensinando-lhes princípios filosóficos positivos. Nada tem a ver com dogmas ou religião.

- Desculpe-me; o senhor é um visionário. Seus princípios são belos, mas estão fora da realidade do mundo de hoje. Agradecemos, mas não vai funcionar.

- O senhor é que pensa! – falei ousadamente. É que seu pensamento também está dominado pela máquina; é por isso que tenciono começar por vocês que os dirigem. O exemplo precisa partir de cima, desculpe a minha franqueza. Mas posso mostrar se me der a chance.

Não tive sucesso. Foi este o tipo de recepção que encontrei em todas as empresas que aceitaram receber um advogado tão jovem e um professor de teologia tão visionário. Concluí como é árduo endireitar cabeças contaminadas por um mundo infestado de mediocridade. Voltei para o meu eremitério e passei a orientar apenas aqueles que me procuram. É o que tenho feito nos últimos trinta e cinco anos.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 23/04/2013
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