JURO... PELO MEU COMPADRE...
- Pois não é que de repente me bateu aqui na cachola um causo que se sucedeu de há muito, lá pelas paragens da Ilha do Cardozo, no vale do Ribeira, num tal de Bairro São Paulo Bagre, capoeirão arretado de mato, bananeira, caiçara e cachaça da “braba”.
- Pois então. No boteco “Pica-pau Amarelo” de propriedade de seu João, todo fim de tarde, um bando de caiçaras vindos da pesca se juntavam para bebericar uns goles de uma aguardente fabricada na propriedade que era de trincar a caneca. Entre um gole e outro rolava conversa solta dos mais variados assuntos. Os peixes escapados, sempre os maiores... A patroa que embuchar de novo só de recolher a cueca do varal... A onça que comeu as galinhas... O cachorro que passou a noite uivando pelos pecadores do purgatório... A dinheirama que compadre tinha oferecido pelo sítio... E a prosa se arrastava até tarde da noite quando todos já não tendo mais o que dizer lá se iam cruzando as pernas sumindo na escuridão como almas penadas em busca de um canto para arriar o corpo. Mortos da lida do dia e encharcados de cachaça.
Foi numa dessas funções que sucedeu o lhes passo a contar tal com escutei de meu velho compadre que jura de pés juntos que foi testemunha ocular e auditiva do fato ocorrido naquelas paragens. Diga-se de antemão que faz muito tempo o ocorrido e por ter o tempo muito passado o causo virou uma espécie de lenda. Mas compadre jura beijando a cruz que assistiu tudo tim-tim por tim-tim sem tirar nem por.
Eis os fatos: Seu João, o dono do bar “Pica-pau Amarelo” fabricou um lote da cachaça, aquela de trincar caneca. Por um descuido, enquanto a garapa fermentava para ir para o alambique, a filha caçula da família “Joaninha”, por descuido, emborcou no tonel uma lata de querosene que servia para abastecer o lampião. Nada disse ao pai temendo receber algum castigo. Resultado. A cachaça ganhou um sabor diferente e triplicou a potência. Deixou de trincar canecas, agora derretia tachos.
O dia foi findando. Tardinha chegando e como de costume os caiçaras saídos de suas catacumbas flutuantes cheirando a maresia se agrupavam para ouvir e contar mais alguns causos e com certeza entornar muitos goles. A primeira rodada foi por conta da casa. A talagada desceu como unha de gato, rasgando a garganta, parecia rastilho de pólvora queimando. Teve olho que chegou a ver as próprias entranhas com as voltas que deu. “Chiquinho” pescador novato, só com meio gole, jurou ter visto a própria alma. Branquinha, branquinha... Isso antes de despencar feito uma tilápia podre e se aboletar no chão do boteco. Gargalhada geral. “Tião Corvina” caiçara das antigas pediu dose dupla. Nunca provara nada igual. Um verdadeiro leite de mãe. Cachaça das boas!
A prosa continuou regada a gargalhadas, histórias de boitatá, piadas de pescador, bocados de traíra na brasa e muita, mais muita aguardente que naquele dia em especial estava mais ardente do que nunca. O mais empolgado com a cachaça, conforme relato de meu compadre, que me garantiu estar presente no local nessa ocasião. Era “Tião Corvina” que só goleava de dose dupla, estalando os beiços. E compadre garante que seu Tião era caboclo de beiço farto, pele amarronzada e forte feito um boi de engenho.
Até aí nada de novo. Tudo normal feito todo dia. Prosa, cachaça, tira-gosto e viola na cantoria. Arre! Não é que ia me esquecendo desse detalhe. Tinha cantoria sim. Os fandangos de autoria de “Chiquinho”, agora apelidado de “Chiquinho Arreado”, falavam sobre as ondas do mar, as sereias, os amores perdidos, de sonhos proibidos e das tradições dos pescadores. A viola caiçara, fabricada de caxeta e maçaranduba, tinha um som choroso, segundo me disse o compadre, e fazia bonito na cantoria. A noite se prolongava até altas horas nesse dia. Parecia até festa da Padroeira. Algumas mulheres, pelo adiantado da hora, vieram buscar seus companheiros e acabaram se juntando a bebericagem e a cantoria.
Pelo que me consta, até meu compadre já arriscava uns passos de dança depois da terceira ou quarta dose. E olhe que compadre é homem sério, de respeito mesmo. Já, “Tião Corvina”, de caneca em punho, sapateava um fandango rodopiando e batendo a sola do pé no chão com tanto vigor que uma nuvem se formava a sua volta. Parecia que o homem flutuava em meio ao poeirão que se erguia do chão. Foi aí que o fato se sucedeu. Empolgado que estava “Tião” pediu outra dose dupla da cachaça e um cigarro de fumo em corda... Ué! Ao que se sabe, “Tião Corvina” nunca pusera um cigarro na boca, nem por brincadeira. Detestava o cheiro, que segundo ele, era igualzinho ao do capeta. Mas... Enfim, era festa e lá foi a dose dupla da “batizada” e o cigarro, este último apagado, é claro... Para o cheiro não incomodar... Surpresa geral, “Tião” queria fogo. Logo apareceu uma “binga” flamejante e assim que tocou a ponta do cigarro foi um estrondo só. Buumm!... Voou “Tião Corvina” prá tudo que foi lado. A viola de “Chiquinho Arreado” só foi vista dois dias depois, sem uma corda sequer em cima de um pé de jambo do outro lado do mangue. O seu João perdeu um olho e hoje anda de tampão feito pirata... Até mudou o nome do boteco Pica-pau Amarelo para “Bar do Pum”... Joaninha, do aperreio por que passou, virou beata e gagueja até hoje... De “Tião Corvina” só encontraram parte da aba de seu chapéu, bem para lá do quebra-mar em meio às pedras da arrebentação... Já meu compadre, que jura que é tudo verdade verdadeira, ainda coxeia um pouco da perna esquerda, vive se benzendo e fica todo empolado quando a prosa é de pescador.
- Pois foi assim que tudo se assucedeu... Juro... Pelo meu Compadre...
- Pois não é que de repente me bateu aqui na cachola um causo que se sucedeu de há muito, lá pelas paragens da Ilha do Cardozo, no vale do Ribeira, num tal de Bairro São Paulo Bagre, capoeirão arretado de mato, bananeira, caiçara e cachaça da “braba”.
- Pois então. No boteco “Pica-pau Amarelo” de propriedade de seu João, todo fim de tarde, um bando de caiçaras vindos da pesca se juntavam para bebericar uns goles de uma aguardente fabricada na propriedade que era de trincar a caneca. Entre um gole e outro rolava conversa solta dos mais variados assuntos. Os peixes escapados, sempre os maiores... A patroa que embuchar de novo só de recolher a cueca do varal... A onça que comeu as galinhas... O cachorro que passou a noite uivando pelos pecadores do purgatório... A dinheirama que compadre tinha oferecido pelo sítio... E a prosa se arrastava até tarde da noite quando todos já não tendo mais o que dizer lá se iam cruzando as pernas sumindo na escuridão como almas penadas em busca de um canto para arriar o corpo. Mortos da lida do dia e encharcados de cachaça.
Foi numa dessas funções que sucedeu o lhes passo a contar tal com escutei de meu velho compadre que jura de pés juntos que foi testemunha ocular e auditiva do fato ocorrido naquelas paragens. Diga-se de antemão que faz muito tempo o ocorrido e por ter o tempo muito passado o causo virou uma espécie de lenda. Mas compadre jura beijando a cruz que assistiu tudo tim-tim por tim-tim sem tirar nem por.
Eis os fatos: Seu João, o dono do bar “Pica-pau Amarelo” fabricou um lote da cachaça, aquela de trincar caneca. Por um descuido, enquanto a garapa fermentava para ir para o alambique, a filha caçula da família “Joaninha”, por descuido, emborcou no tonel uma lata de querosene que servia para abastecer o lampião. Nada disse ao pai temendo receber algum castigo. Resultado. A cachaça ganhou um sabor diferente e triplicou a potência. Deixou de trincar canecas, agora derretia tachos.
O dia foi findando. Tardinha chegando e como de costume os caiçaras saídos de suas catacumbas flutuantes cheirando a maresia se agrupavam para ouvir e contar mais alguns causos e com certeza entornar muitos goles. A primeira rodada foi por conta da casa. A talagada desceu como unha de gato, rasgando a garganta, parecia rastilho de pólvora queimando. Teve olho que chegou a ver as próprias entranhas com as voltas que deu. “Chiquinho” pescador novato, só com meio gole, jurou ter visto a própria alma. Branquinha, branquinha... Isso antes de despencar feito uma tilápia podre e se aboletar no chão do boteco. Gargalhada geral. “Tião Corvina” caiçara das antigas pediu dose dupla. Nunca provara nada igual. Um verdadeiro leite de mãe. Cachaça das boas!
A prosa continuou regada a gargalhadas, histórias de boitatá, piadas de pescador, bocados de traíra na brasa e muita, mais muita aguardente que naquele dia em especial estava mais ardente do que nunca. O mais empolgado com a cachaça, conforme relato de meu compadre, que me garantiu estar presente no local nessa ocasião. Era “Tião Corvina” que só goleava de dose dupla, estalando os beiços. E compadre garante que seu Tião era caboclo de beiço farto, pele amarronzada e forte feito um boi de engenho.
Até aí nada de novo. Tudo normal feito todo dia. Prosa, cachaça, tira-gosto e viola na cantoria. Arre! Não é que ia me esquecendo desse detalhe. Tinha cantoria sim. Os fandangos de autoria de “Chiquinho”, agora apelidado de “Chiquinho Arreado”, falavam sobre as ondas do mar, as sereias, os amores perdidos, de sonhos proibidos e das tradições dos pescadores. A viola caiçara, fabricada de caxeta e maçaranduba, tinha um som choroso, segundo me disse o compadre, e fazia bonito na cantoria. A noite se prolongava até altas horas nesse dia. Parecia até festa da Padroeira. Algumas mulheres, pelo adiantado da hora, vieram buscar seus companheiros e acabaram se juntando a bebericagem e a cantoria.
Pelo que me consta, até meu compadre já arriscava uns passos de dança depois da terceira ou quarta dose. E olhe que compadre é homem sério, de respeito mesmo. Já, “Tião Corvina”, de caneca em punho, sapateava um fandango rodopiando e batendo a sola do pé no chão com tanto vigor que uma nuvem se formava a sua volta. Parecia que o homem flutuava em meio ao poeirão que se erguia do chão. Foi aí que o fato se sucedeu. Empolgado que estava “Tião” pediu outra dose dupla da cachaça e um cigarro de fumo em corda... Ué! Ao que se sabe, “Tião Corvina” nunca pusera um cigarro na boca, nem por brincadeira. Detestava o cheiro, que segundo ele, era igualzinho ao do capeta. Mas... Enfim, era festa e lá foi a dose dupla da “batizada” e o cigarro, este último apagado, é claro... Para o cheiro não incomodar... Surpresa geral, “Tião” queria fogo. Logo apareceu uma “binga” flamejante e assim que tocou a ponta do cigarro foi um estrondo só. Buumm!... Voou “Tião Corvina” prá tudo que foi lado. A viola de “Chiquinho Arreado” só foi vista dois dias depois, sem uma corda sequer em cima de um pé de jambo do outro lado do mangue. O seu João perdeu um olho e hoje anda de tampão feito pirata... Até mudou o nome do boteco Pica-pau Amarelo para “Bar do Pum”... Joaninha, do aperreio por que passou, virou beata e gagueja até hoje... De “Tião Corvina” só encontraram parte da aba de seu chapéu, bem para lá do quebra-mar em meio às pedras da arrebentação... Já meu compadre, que jura que é tudo verdade verdadeira, ainda coxeia um pouco da perna esquerda, vive se benzendo e fica todo empolado quando a prosa é de pescador.
- Pois foi assim que tudo se assucedeu... Juro... Pelo meu Compadre...