PELA CACHAÇA...

"Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir. ...

Deus lhe pague!"

("Deus lhe pague", Chico Buarque de Holanda)

Eram seis os homens naquele boteco de bebida e de comida pobre.

O dono, de pé, submisso e a disposição, servia bebidas aos quatro fregueses desconfortavelmente sentados em banquetas de madeira, tendo a frente copos de cerveja barata.

Três deles claramente trabalhadores rurais, corpos curvados e com os braços descansados nas coxas.

O outro um homem de grande proporção, rosto sangüineo, sentado ereto, traje de qualidade e imensa corrente de ouro em torno do pescoço. Nos dedos da mão direita, variados anéis de ouro e prata, incrustada num deles, faiscante pedra negra.

O homem dos anéis tinha os enormes braços cruzados no peito, postura que lhe conferia defesa e autoridade, a demonstrar que estava ali por deferência e liberalidade aos trabalhadores que trazia de volta para as suas casas, após mais um dia de trabalho mal remunerado.

A bebida oferecida era o fel do dia e tinha por finalidade manter o rebanho na superfície.

Não havia conversa.

Reinava silêncio constrangedor que, de tão sólido, podia ser apalpado por qualquer um deles, se assim desejasse.

Porém, o único desejo era terminar rapidamente com as bebidas e ir para casa.

Foi neste ambiente, saindo do sol abrasador da Rua do Fico, em Araçatuba, que o negro entrou.

Estava visivelmente bêbado.

Vestia-se de abandono, pés descalços, nenhuma auto-estima e fedia alcoolismo e a extrema pobreza.

Dirigiu-se ao patrão, porque tinha por instinto conhecer o feitor:

____ Paga uma pinga?

____ Só se você me der o c... !

Apenas o homem dos anéis riu da grosseria e da própria piada de mal gosto.

O negro encarou o homem com seriedade, engoliu seco e pensou tempo demais antes de responder:

____ Isto não!

E saiu do bar.

Pouco depois retornou.

Com as mãos tremulas que pediam bebida, encarou o homem dos anéis:

____ Como o mundo está mesmo perdido... aceito!

Todos riram.

O homem dos anéis riu muito e continuou a rir depois que os demais não o faziam mais, e até que as veias do seu pescoço se tornassem salientes, prontas para explodir e seu rosto se transformasse em vermelho como nunca o tinha sido e seu riso se fez rouco e depois se fez guincho, antes de engasgar e tossir.

Parou de tossir e continuou a rir, solitário.

Ficou sério e disse:

____ Pago a bebida. Mas tem que ser do meu modo!

Pediu ao dono do bar o maior copo do bar e ele trouxe um copo enorme, quase do tamanho de uma garrafa.

O homem dos anéis colocou o copo no centro do balcão e com a mão esquerda segurou a camisa no peito do negro e puxou-o para si.

____ Como eu disse tem de ser do meu modo!

Ordenou ao dono do botequim:

____ Encha o copo completamente.

A bebida barata, transparente com água, foi derramada da garrafa para o copo, lentamente, lentamente demais.

O negro passou a língua nos lábios.

Os trabalhadores fizeram silêncio.

Silêncio de quem está acostumado a obedecer.

Ordenou o homem dos anéis:

____ Não deixe derramar.

As palavras soaram como guinchos de cascavéis.

____ Nunca deixar entornar, este é meu lema - completou à guisa de esclarecimento.

O negro ficou a olhar o líquido no copo.

A taça sagrada com o sutil veneno.

O abismo diante de si.

A língua girando ligeira nos lábios secos de fome e miséria.

____ Agora - disse o homem dos anéis - você vai ter que beber tudo. De uma só vez, de um só gole, sem parar para respirar.

Dos dois, o olhar do bêbado era o que ainda demonstrava algum resquício de sanidade.

As mãos fortes do homem dos anéis, pousada em seu peito, era o que menos lhe ofertava resistência.

O rosto dele crispou na tentativa de dizer não.

____ Beba!

Era a oportunidade da necessidade humana de degradar.

De esmagar o semelhante, de aviltá-lo, de fazer dele objeto de troça e de chacota, esmigalhá-lo, sem matá-lo de imediato.

O homem dos anéis pegou do enorme copo transbordante da maldade.

No limite das forças e acuado pelo líder da matilha, o negro encarou o copo.

____ De uma só vez... de um só gole...

Riu alto, como da outra vez.

O vício, a fraqueza, a dependência, prevaleceram.

Os trabalhadores, em torno, demonstravam desconforto.

Um deles, mulato, saiu do recinto.

Ficou no limiar da porta com a calçada, de costas para o interior do bar, com olhar perdido na distância.

O homem dos anéis entregou o copo ao bêbado.

E, com surpresa, percebeu que ele o segurou sem entornar.

E que, no semblante, demonstrou fragmentos de inútil resistência à vertigem, à fúria e à correnteza que o arrastava para a morte.

Era a coragem sem resultado.

O negro levou o copo aos lábios e deixou que o amargor da provocação deslizassem para dentro de si, junto com o líquido infame que ameniza a aspereza da vida.

Bebeu tudo, gole a gole, sem tirar dos lábios, no tempo em que aos expectadores pareceu a eternidade.

Sem derramar nenhuma gota.

Da sagrada taça da morte.

De acompanhamento, o riso alto e sufocado de guinchos do homem dos anéis.

Ao terminar, de imediato cambaleou e arriou o corpo, como um fardo sem matéria e sem sustentação.

Um líquido amarelo e fétido manchou-lhe as calças, cheirando a urina.

____ Tirem-no daqui - ordenou o imenso homem.

Um dos trabalhadores obedeceu.

Agarrou o negro pelos braços inertes e arrastou-o para fora, colocando-o na calçada, ao lado do mulato, que deu alguns passos e ficou a olhar a vitrine de uma loja de um e noventa e nove.

Seria capaz de apostar que procurava por facas.

Mas efetivamente lutava para manter-se alheio àquela inconveniência.

Deu as costas à vitrine que só oferecia inutilidades e ficou a olhar distante e a espiar o céu que, a despeito de todo azul, insistia em tomar a forma de um terrível demônio.

O homem dos anéis pagou a conta e arrebanhou seus homens para a camionete.

O mulato aboletou-se solitário na caçamba.

Tivesse acontecido o pior, ocorreu-me refletir como o acusador criminal no judiciário, colocaria no papel o peso psíquico do ambiente, o cheiro doce de flor e morte no imaginário de todos naquela hora e lugar, os lampejos nos olhos a saltarem daqui para ali à espera do desfecho, o desconforto que brotou do coração.

Era a realidade no lugar da lei.

Difícil tarefa, pois que, como um defunto que se vela para o sepultamento, a verdade já é morta quando se deita numa branca folha do papel.

Quando partiram, cantando pneus, quem o olhasse diria que carregava na mão um copo cheio de amarguras.

Prestes a transbordar.

Pedi outra cerveja e continuei a ver a tarde passar.

Mas, como minha senhora?

"Por que não fiz nada para defender o mendigo?"

À sua pergunta respondo com outra:

"Por acaso sou o guarda do meu irmão?"

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25-03-2007

Obrigado pela leitura.