A minha irmã
-Conversa puxa conversa e a gente termina falando do que deve e do que não deve. Você sempre me envolve com suas frases pré-fabricadas. Não posso esconder o quanto o admiro. Meus olhos por si só denunciam esse sentimento. Pecam demais quando olham para seu corpo muito embora cresçam quando encontram os olhos de sua alma e com eles navegam em busca dos nossos belos momentos.
-Mas eu sou o culpado por tudo.
-A culpa, toda ela, atrela-se a nossos preconceitos. O que é bom ou certo para nós nem sempre o é para os outros.
-É desculpa sua. Você não quer que a coisa morra. Entre nós isso é navalha afiada que corta até o vento.
-Navalha atrevida e louca!
-Mas não deixará de ser navalha, nunca, meu amor.
-Desejo-o assim mesmo. Amo-o: seus olhos, sua carne e sua alma. Não se culpe por isso.
-Uma família é um monumento à tradição. Um povo recolhe-se sob a força de sua figuração social. É dela que tiramos a essência de nossa convivência. Quando saímos de casa, um pedaço de sua sombra fantasmagórica nos acompanha. A família é um grude que nos endereça ao convívio social das ruas e das outras casas. A nossa parece ser a mais forte de todas as outras que já conheci. Meu pecado é ver você com outros olhos que nunca pude entender onde os encontrei. Você afia minha navalha e me corta com ela como se eu fosse um bêbado que nunca bebeu o espírito do vinho.
-Almir, o pior pecado que poderemos encontrar dentro de nós é aquele que não pode ser guardado em nossas almas como bom para você e para mim. O que gostamos de fazer é o que nos faz bem. Se é ruim para os outros, paciência; é bom para nós. Para eles é um pecado? Pouco me importa!
-Maria, a concepção que temos até de nós mesmos é como a navalha que cremos ser: corta com as duas faces, onde deve e quando não deve. Conceitos são feitos no arranjo dos discursos. O limite do que podemos é tênue ou extenso a depender dos nossos preconceitos. Não posso continuar alimentando esse nosso romance!
-Mas eu o amo, Almir, como nunca amei ninguém antes. Dependo de suas entranhas suculentas. Vou morrer, sem ter você. Sua alma é quem dá a cor e o cheiro de seu corpo. Seu perfume é agridoce como eu sempre o desejei. Nossos corpos são um do outro. Nossa cama é farta de nós e não cabe mais ninguém que não nós dois. Não se importe com o que somos.
-Você faz o seu próprio furor. Tenho medo de sua alma. É corrente que amarra até as palavras do meu silêncio.
-É porque descendemos de um mesmo tronco de sangue. A irmandade faz essas coisas existirem.
-Tenho medo, mana.
-Mas não se esqueça da força dessa mulher que há em mim. Possuo armas terríveis!
-Sou um homem frágil, fisgado por seus olhos valentes e audaciosos.
-Mais sensual do que isso que você me disse nesse instante, nunca ouvi antes, creia. Não me deixe só.
-Valente, mais que tudo. Você é quanto maior quiser ser.
-Por quê?
-Porque inusita e fere, beija e morde, dá-me de beber da água fervente do seu corpo. Fico com a boca aftosa do seu veneno fumegante. Não sou mais eu somente. Você preencheu até meu fôlego. Acho que já me basta viver.
-Não o deixo morrer. Não respondo por ninguém. Não somos mais corpos e almas. Somos sombras perdidas nos desejos. Provar um ao outro, na prima vez foi nossa maior ousadia. Adoecemos depois de termos feito.
-Por quê?
-Porque, meu irmão, a vida é isso também. Desviamo-nos desacertadamente ou enxergamos o que cega outras pessoas.
-Nossa família ruiu!
-Para mim cresceu. Nossos pais são os que vivem a defender. O que menos me importa hoje é uma religião. Meu Deus é de carne, macio, sem ossos. Gosto de pensar nele como um vulcão em insônia constante. Suas lavas são meus goles de desejo. Amo-o quando em franca erupção. Tenho medo dele, também. É poderoso.
-Você não tem medo sequer de ter medo. Há muito exagero nos seus sentimentos. É furiosa, urra para esfregar seu corpo noutro.
-Não! Serve-me apenas o seu. Sou sua loba. Quero-o meu filhote faminto para mamar até nos meus dedos e nunca envelhecer.
-Eu preferiria ficar com a força de nossa família.
-E da navalha dela, não tem medo?
-Nunca tive. Você me fez perder um bom pedaço de minha auto-estima.
-Não recue, Amir: eu mato você!
-Já morri faz tempo. Só os vermes incestuosos desses nossos sentidos é que me ressuscitam diante dos seus olhos.
-Nosso orgasmo é diferente, eu sinto isso.
-Ele é feroz, isso sim.
-Irmão sente o que os estranhos sentem entre si. Se não nos conhecêssemos, nada do que quer me impedir agora, existiria.
-Você se esquece de que participamos de uma sociedade cheia de regras.
-Até nós as temos. Quando fazemos amor, só nos serve a escuridão da noite. As estrelas nos catucam. O vento não passa entre nossos corpos e nossas almas são foliãs astutas que desvendam as magias do Cupido. Somos diferentes de todos. Não vejo o porquê de você preocupar-se com a censura das diferenças dos estranhos.
-Maria Nilza, não a quero mais como amante.
-Então, sendo assim, te darei o que minha vontade manda. Não quero deixar de ser possessiva. Prefiro bater, muito embora apanhar também possa vir a ser o meu forte: é só escolher outro irmão, diferente de você.
-Não se precipite, mana...
-Eis o que você merece há séculos.
-Fazer tudo isso com outro irmão é pecar duplamente. O erro se refaz acrescido de mais erro ainda.
Era uma sexta-feira. Chovia fino e a tarde estava escura. O Sol havia se apressado para se esconder no céu e por isso a Lua apontava no firmamento antes que a noite descortinasse com as estrelas para lhe fazer um fundo de palco perolado e cintilante.
Almir não foi necropsiado. O dinheiro dos Carvalho comprou a dignidade e a técnica de que precisou. A família enlutou-se num falso suicídio e ficou dele a lembrança errada de alguém que nunca fora frágil, mas enfrentou a morte e até nela foi incompreendido.
Maria chorou por dois lutos na igreja matriz. Suas lágrimas eram bicolores. Suas mãos trêmulas e sua vergonha contida entre elas falavam sem achar olhos que pudessem ouvir os seus gestos denunciantes de seu primeiro homicídio passional.
Onze anos depois eu e meus pais soubemos que ela havia degolado nosso irmão caçula, Jorge, e que tinha sido presa em flagrante delito. Só minha mãe foi ter com ela à época. Nunca mais a vimos, nem atrás das grades justas que, sem bocas, falavam as verdades que não ficaram em sua alma. Maria nascera para ser diferente. Do presídio foi ao nosocômio judiciário e lá morreu aos trinta e nove anos, enforcada por uma companheira de cela.Sobre Almir, apenas quando o tempo não se prestava mais para anunciar-nos sua real história foi que noticiaram-nos. Por esse outro crime não houve justiça!