A Zaragata

- Isso! É isso mesmo filha!.. Chama-lhe, chama-lhe antes que ela te chame a ti.

- O quê? Ó sua delambida!.. Vaca és tu. Ou achas que eu sou da tua igualha? E vossemecê, sua beata, sua rata de sacristia, devia ter vergonha em meter-se na discussão entre mim e a ordinária da sua filha.

- Ordinária és tu, minha porca. Sempre a saracotear-te para o meu namorado.

- Ai deixa-me rir!.. Namorado? Toma juízo! Lá porque dançou duas vezes contigo já é namorado.

As vizinhas ao som da altercação iam chegando como abelhas ao cortiço, ávidas de novidades que nestas alturas se descobriam. Umas verdades, outras meias verdades e ainda mentiras raivosas como meio de agressão, com finais incertos no futuro, onde a vingança tomava por vezes tons dramáticos.

Os homens procuravam alhear-se a estes conflitos, fugindo deles como o diabo foge da cruz. Sempre que por azar eram apanhados no meio e tomavam partido, gerava-se zaragata de cabeças partidas e uns tempos sem falar com o vizinho, com prejuízo de ambos.

Era normal sempre que começavam estes desacatos, os homens saírem do local o mais rápido possível. Salvaguardando deste modo a paz entre os vizinhos. Não escapando no entanto ao sermão da companheira, pelo facto de não a defender.

Esta guerra de palavras entre o mulherio servia de divertimento à rapaziada, sempre à espera que elas se agarrassem e lutassem a sério, o que pelo desenrolar da discussão não devia tardar.

- É verdade! é namorado da minha filha sim senhor..e depois? Queria-lo para ti, querias?.. Minha ranhosa.

- Nem a idade lhe deu juízo, ó sua chafurdeira de água-benta, tenha tino que já tem idade p’ra isso. E sabe que mais? Não me puxe pela língua, ai não me puxe não, porque leva também por tabela…ai leva, leva.

- Ó mãe, não dê conversa a essa lambisgóia, que não passa de uma oferecida.

A Rosa tornou-se lívida por esta última palavra. Apesar do destempero da discussão, havia limites inultrapassáveis e esta era uma das mais agressivas a que nenhuma mulher honesta poderia ficar indiferente.

- Oferecida! Eu?.. Espera que eu já de dou a oferecida.

Sem que ninguém a impedisse, agarrou a Chica pelos cabelos fazendo-a rodopiar e sem largar a grossa trança, atirou-a ao chão. A velha mãe da Chica, vendo a filha estatelada, esqueceu-se da idade e atirou-se de garras abertas ao pescoço da Rosa com tal ímpeto que caíram ambas em cima da Chica que a custo procurava levantar-se. As três agora no chão, enroladas umas nas outras, rebolavam numa confusão de braços e corpos enroscados, saias levantadas e cabelos em desalinho, lutavam com uma ferocidade que levantou uma grande poeirada.

O pó levantado, ofuscava os olhos arregalados da rapaziada, perante as pernas ao léu das raparigas e a menos composta situação da tia Alzira, sem nada por baixo a tapar, atraía a mais atenção.

Tinha-se formado um círculo em volta das zaragateiras, com a canalha empurrando-se uns aos outros na busca de melhores lugares. «Dá-lhe…Força». Os gritos entusiásticos dos rapazes eram abafados pelos «parem! Parem», das mulheres. As saias já meias despidas, blusas sem mangas, deixando a nu os contornos femininos, urros e ais, mostravam a têmpera das lutadoras, alheadas de tudo num frenesim que não deixava ver quem dava e quem levava. Numa bulha sem regras, com bofetões, cabelos arrancados, arranhões, roupa rasgada, utilizando as mãos como garras que tudo puxavam, rasgavam e em tudo batiam, numa cegueira que não sabiam quem batia em quem.

Ao delírio de uns que se manifestavam com grande escarcéu, opunham-se a preocupação das vizinhas, inquietadas com o rumo da guerreia, sem no entanto coragem em nenhuma das mulheres para se atrever a saltar p’ra roda, a tentar separa-las, com receio de lá ficar envolvida.

- Ninguém se mete.- Gritava um rapazelho, deliciado com o espectáculo da luta. - Ninguém se met…

Subitamente, um dilúvio de água surpreendeu toda a gente, pondo fim à luta e a garotada em debandada.

- Andor! Andor daqui p´ra fora estupores, canalha do diabo. – Exclamou a Dona Laura ainda com o balde na mão.

Indignado e encharcado como um pinto, um mais espigadote, avançou de peito feito prá velha senhora, procurando explicações pelo banho forçado e quebra repentina do espectáculo.

- Acha bonito o que a senhora fez?

- Ai! Queres mais?

À vista do outro balde que uma vizinha passou para a Dona Laura, o refilão deu um salto para trás, resmungando algo ininteligível.

- Vão, vão, ao vosso pai que vos amostre e à vossa mãe que vos deixe ver. E vocês não têm mais que fazer do que dar este espectáculo. – Surpreendidas por aquele dilúvio que lhes arrefeceu os ânimos, as três mulheres sentadas no chão, desviavam dos olhos os cabelos molhados. Encharcadas e envergonha-das as contendoras não responderam à austera figura da Dona Laura.

- Vamos raparigas! Cada qual para sua casa. Vamos! E vocês sigam também à vossa vida. – Ordena a Dona Laura com autoridade, apontando para o grupo de mulheres.

- Alzira, espera aí um pouco para eu falar contigo.

Bichanando umas com as outras, o mulherio aos poucos foi desandando da rua para os seus afazeres, antes que a Dona Laura se lembrasse de lhes dar algum sermão.

A Dona Laura ou senhora professora, como muitos a tratavam, fora a mestra de quase toda aquela gente. Durante décadas ensinara os filhos, pais e alguns avós daquela aldeia. Viera de uma aldeia vizinha, mas ali casara e tivera os seus filhos. Agora, esta é que era a sua aldeia, este é que era o seu povo, que a respeitava como mestra disciplinadora que fora e amava, pois viam nela um baluarte de autoridade, humanismo e caridade, sempre pronta a ajudar quem dela precisasse.

Não se sabe que sermão a Dona Laura deu à senhora Alzira. Mas passado uma semana, já as três mulheres se falavam e sussurravam como grandes amigas sem alguém lhes ouvir a falar em namorados, a causa de tamanho desacato entre elas.

Decorrido cerca de um mês, Armando, o pinga-amor que se gabava de namorar com quase todas as raparigas da aldeia, destroçando-lhes os corações por vaidade. Pouco se importando com os sonhos que elas acalentavam perante as promessas de amor. Às mais desconfiadas pela sua fama, Armando dizia que não passavam de invejosas e despeitadas, mas interesse a sério, era nela. Assim ia ganhando apostas e alimentando o seu ego de homem vaidoso, de que nenhuma mulher lhe resistia sem se preocupar com o rasto de despeito e ódio que ia semeando.

Numa noite, acordou todo cheio de ligaduras, numa cama do hospital da vila, bastante combalido da tareia que alguém lhe deu. Às perguntas da polícia, respondeu que não sabia quem lhe tinha batido, mas tinha-lhe parecido terem sido mulheres pelas vozes e saias de que ainda se lembrava de ver e ouvir.

Lorde
Enviado por Lorde em 21/04/2013
Reeditado em 21/04/2013
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