UMA CASA, UM CACHORRO E A SAUDADE

Mauro Martins Santos

Aquela casa que vi foi alguma coisa muito especial. Não porque fosse bonita demais, nem moderna, nem grande. Muito pelo contrário. Era até feia, velha, antiga e relativamente pequena. Mas eu a achei linda e chamou a minha atenção.
A casa era branca, com portas e janelas grandes de madeira, pintadas de azul. Tinha em seu lado direito, uma porta grande e antiga, elevada do chão, de forma que havia uma soleira de cimento rústico e muito envelhecido com dois pequenos degraus, um para a frente sentido da rua, outro para trás no sentido do terreiro. Terreiro mesmo! Igual ao quintal da casa da vovó nos tempos de criança! De chão batido do jeito que eram os terreiros de verdade, de terra pura, que eram varridos com vassoura feita com galhinhos de bambu, para ficarem bem limpinhos. Tinha um rego de água para molhar a horta que ficava lá no fundo.
O terreiro daquela casa tinha uns pés de lírios amarelos. Lírios com forma e tipo de saudade. Iguais aos que existiam na minha infância, que também tinham os mesmos pés de copos-de-leite que estavam lá no fundo, agrupados ou em fila, perto de um mourão meio podre, preto e fincado no chão onde se firmava a cerca da horta feita de bambus.
Tinha umas galinhas-de-pescoço-pelado carijós e um galo esperto, valente e cantador. De canto curto e firme. Devia ser da raça galo-índio. Daqueles que meu pai criava e tomavam conta do quintal, avançando até em cachorro. Uma galinha ciscava no terreiro acompanhada de uma ninhada de pintinhos, amarelinhos e pretos, porque iriam ficar carijós. Uns franguinhos já começavam a testar sua valentia com provocações entre si, estes de raça ruiva, de pescoços arrepiados como se fossem brigar. Tudo igualzinho a minha infância que ficou lá para trás.
Os lírios e os copos-de-leite eu os vi à distância. A casa também. Mas tinham cheiro. Tinham cheiro e forma. Lembravam o som de vozes amigas, de fantasmas queridos daqueles que se foram e já estão no futuro da eternidade. Futuro porque aguardam a gente.
Tudo tinha a feição da saudade. Não daquela saudade forçada, buscada pela mente de forma incessante. Não! Era como se viessem à memória quadros, da forma mais natural. Vinham porque queriam vir automaticamente.
Ah! Tinha um cachorro! Cachorro mesmo. Não era cão - que, senão a gente tem que explicar a raça. Mas que cachorro! Do tipo vira-lata e assumido. Feliz por isso. E ele provava que era feliz pela forma com que, deitado no terreiro, olhava mole para o mundo - que inteligente - mundo que pouco lhe importava. Abocanhava as moscas que lhe rodeavam e às vezes bocejava para a tarde que já se aproximava. Estava deitado não porque estivesse doente ou fraco. Estava deitado porque estava de bem com a vida e seu mundo.
Cachorro comum, de um amarelo característico do vira-lata assumido, sem feição definida mas com a cara e focinho daqueles uns que povoaram a minha infância. Igualzinho àqueles que meu pai pegava da rua e depois se transformavam nos maiores, mais amigos e melhores cachorros do mundo, porque não tinham compromisso com nada, nem com identidade nem com raça, por conseguinte nem consigo mesmos. Só se achavam na obrigação de serem amigos, nada pedir, tudo a dar de si e cumprimentarem educadamente com abanar de rabo seus amigos homens mais próximos.
Desgostavam dos que não conheciam e trabalhavam duro à noite, xingando com latidos tudo o que se movimentava, como que dizendo: esse pedaço pertence a meus donos e portanto é meu!
Aquela casa tinha cerca de bambu! Já pensaram o que significa isso? É coisa do tipo que a gente, quando era criança, podia ver do que os amiguinhos estavam brincando no vizinho. E, podia também pirracear com eles,
e, o mais importante; ver a cara deles quando não gostavam. Mostrar a língua para fazer eles chorarem, dando-nos com isto a vitória.
Tudo isto eu vi. Num breve instante todo o quadro se formou.
Que saudade! De meu pai, de minha mãe, de meus irmãos, dos vizinhos e dos amigos de minha infância lá em minha cidade, hoje tão longe no tempo e na distância. De tudo. Sem forçar a mente, de modo natural, isento como o passar da brisa, que a sentimos mas não a vemos. Sem saudosismo, de forma real nas figuras da memória, verdadeira. De forma comum e simples igual ao cachorro desta história.
Senti uma brisa mais forte a roçar meu rosto, senti frio dentro de mim, enquanto podia ver uma revoada de passarinhos, que pareciam se despedir do visitante anônimo, mas que me conheciam, desde que nasci...




 
Mauro Martins Santos
Enviado por Mauro Martins Santos em 20/04/2013
Reeditado em 04/03/2015
Código do texto: T4250036
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.