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Os dedos finos da chuva tamborilavam no parapeito da janela, dizendo: "Lembre! Lembre!" Ela olhava para fora, e já não sabia se enxergava a chuva no vidro, ou se eram suas próprias lágrimas. Aconchegou-se ao cachecol. Fungou.

 

Mais um dia.

 

Suspiro.

 

Ainda de camisola, foi lá para fora, para a vida, fazer aquilo que todos esperavam dela: viver. Ou algo assim. Preparou o café em transe, despediu-se do filho, que saiu para a faculdade, beijou o marido sem nem sequer vê-lo direito. Ele dissera algo; o que, meu Deus? Não importava. Aprendera a olhar as pessoas, ver seus lábios se mexendo, sorrir levemente e acenar com a cabeça. Mas o que eles diziam? Não tinha a menor importância. Sabia que, quando alguém afagava seu ombro - o que doía -, tinha que dizer "Obrigada."

 

Às vezes, quando estava um pouco mais alerta, escutava-os dizendo: "Já fazem dois anos..."  mas por que o tempo só não passava para ela?

 

Achava cruel, a maneira como as pessoas se aproximavam sorrindo, perguntando (quase afirmando) se estava tudo bem, e antes que ela respondesse , iam passando, pois na verdade, não estavam interessados na reposta; ninguém queria ouvir a ladainha de uma pessoa enlutada. Queriam - exigiam - que ela estivesse bem.

 

Lavou as xícaras, secou-as e guardou-as no armário. Também desfez a mesa do café - sem ter comido quase nada; apenas brincava com os alimentos, enfiando alguma coisa na boca, para que não fosse obrigada a ouvir as mesmas ladainhas: "Você precisa comer, você precisa reagir, você precisa sair mais..."

 

Você precisa.

 

Pegou a caixa com as fotografias, como sempre fazia, e sentou-se na cama, espalhando-as sobre a colcha gasta. Lá estava ela, sorrindo, entre as amigas; e a primeira comunhão. O aniversário de nove anos, o de doze, o de vinte. A foto de formatura . Os sorrisos congelados para sempre, a imagem de uma menina feliz e morta.

 

Morta.

 

A realidade doía. 

 

Guardou as fotos e foi às compras no supermercado. 

 

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A manhã estava morna e cinzenta. Parecia que nunca mais ninguém veria o céu azul, ou que ele fosse apenas uma lenda. A chuva havia passado, mas no chão, poças de água de todos os tamanhos. Encontrou um vizinho, que acenou para ela alegremente, e ela automaticamente, acenou de volta. Passou, seguiu.

 

Chegou em casa com as compras e começou a preparar o almoço. A irmã ficara de passar para almoçar com ela. Pôs a carne no forno, começou a picar os legumes. De repente, entrou em um transe. O tiquetaque do relógio na parede acima da pia parecia ter o poder de hipnotizá-la, levando-a de volta ao passado, quando a menina vivia. E escutava os ecos de seus risos pela casa, a voz dela pedindo: "Mãe, passa a minha blusa azul?" E lembrou-se de quando ralhava com ela, por deixar tudo para a última hora: "Por que não pediu ontem, filha?"

 

E agora, voltando aos legumes picados - após um pequeno talho no dedo, que foi lavar sob a torneira da pia - ela só pensava que gostaria de ficar o resto da vida passando todas aquelas blusas azuis, verdes, amarelas, brancas... se isso fosse trazê-la de volta por apenas um ou dois minutos que fossem!

 

Jogou os legumes na caçarola, pôs o sal, refogou , jogou água. Olhou a carne no forno. Olhou o arroz, enxugou as mãos no avental. Recostou-se contra a pia, olhou a cozinha embaçada pelo vapor das panelas. Abriu a porta, mas a luz que vinha lá de fora, apesar do tempo cinzento, e os gritos das crianças brincando, era vida demais para ela. Fechou aporta.

 

 

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Olhou para o corredor. Escuro. Vazio. Nunca mais ela passaria por ele apressada, para dar-lhe um beijo antes de ir. Nunca mais. Esta era a sua frase, a frase que representava todas as expectativas que pudesse ter sobre a vida: "Nunca Mais."

 

A distância que se fizera entre ela e o marido estava cada vez mais se esticando, e ela sabia que a hora em que aquele elástico absurdamente longo se partiria, estava chegando. Ele ia embora. Aliás, já tinha ido; só o corpo dele estava por ali, vagando. Às vezes pensava o que sentiria se ele morresse. Choraria? Será que acordaria? Sentiria falta dele? Não sabia que ele pensava exatamente a mesma coisa, e se fazia as mesmas perguntas. E depois que ele fosse embora, e o filho finalmente se mudasse - estava procurando apartamento - o que ela faria?

 

Já passava dos quarenta. Estava fora do mercado de trabalho há muito tempo. Passara a juventude cuidando dos filhos, da casa, do marido. Nunca fizera mal a ninguém na vida! Nunca, nem uma vez, desejara mal a qualquer criatura viva, e sempre que podia, recolhia animais abandonados na rua e ajudava-os a encontrar um dono. Diziam que ela era boa. 

 

Então, por que?!

 

Lembrou-se do dia do velório, quando uma senhora que nem sequer conhecia, aproximou-se dela e disse: "Deus quis assim!" A partir daquele momento, ela passou a odiar Deus. Até mesmo sua querida santinha, a quem tinha sido sempre tão devota, passou a ser encarada como uma inimiga. Só não jogara a imagem fora porque tinha sido presente de sua mãe, que trouxera para ela de uma viagem que tinha feito à Fátima. 

 

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E todos diziam que ela tinha que se apegar a alguma coisa; precisava ter fé! Ora, fé ela tivera, durante todo o período da doença da filha! Tinha feito promessas e mais promessas, rezado missas, feito novenas. Nunca tinha sido tão carola, a fé brotando por entre seus dedos, despejando-se dos seus olhos, saindo-lhe pelos poros enquanto afagava a cabeça da filha no leito de hospital, dizendo a ela que ia ficar boa, que ia curar-se. E ela realmente acreditou na cura! Mas sua santinha havia praticado a maior das traições: levou sua menina! Levou sua menina, por pura inveja, porque seu Filho também tinha sido levado! E por causa disso, ela agora odiava todas as mães, e levava-lhes os filhos! Era como uma cínica serial killer de véu branco.

 

Seus pensamentos foram interrompidos pelo toque da campainha. Abriu a porta para a irmã, que a abraçou, trazendo a vida lá de fora. Cheirava à chuva fresca e fumaça dos carros. Era vida demais, e ela encolheu-se dentro dos braços da irmã, para tentar evitar ao máximo o toque daquele corpo. A irmã, ao olhá-la novamente, comentou:

 

-Que tempo! Já começou a chover de novo!

 

Ela pegou a bolsa da irmã, pendurando-a no cabide do corredor. Sorriu, seu sorriso leve e casual. A irmã sentou-se à mesa da cozinha, dizendo:

 

-Você está bem melhor hoje, querida. Parece bem melhor!

 

Ela sorriu novamente, concordando com a cabeça. Era isso que esperavam dela.

 

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Ana Bailune
Enviado por Ana Bailune em 19/04/2013
Reeditado em 19/04/2013
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