Felicidade

Numa daquelas ocasiões em que iniciamos um novo dia sem qualquer espécie de planejamento, a agenda totalmente vazia e um carrilhão de horas a clamar atividades, somos alguém especial. Tão farta de compromissos anda a vida que, vivê-la de fato, tornou-se uma raridade. Quando as preocupações com o mundo de um modo geral atormentam cada momento, a felicidade escapa pela janela e vai à busca de uma mente mais fresca e disponível para ela. Eu me sentia assim naquela manhã singular.

Havia entregado, na véspera, minha última obra à exigente editora e dei a mim umas férias. As férias de um escritor ele mesmo as faz. Quem as demanda não é o espírito da obrigação, mas a necessidade do tédio. Se todo prazer de escrever, contemplar a obra e receber dos leitores o carinho, a crítica sincera e as sugestões se prolongasse no relacionamento com a imprensa sagaz e com certas editoras que sobrevivem, menos da exploração da fama do que da ilusão do amadorismo, tudo seria férias e lazer para o escritor.

Mas ele sonha fazer da sua arte profissão e são as barreiras a esse sonho que o fazem parar de vez em quando e esquecer-se de tudo; até de si mesmo. Mas a insatisfação anda a solta e tudo é motivo para uma história a mais.

Não preciso dar-me ao trabalho de arrumar malas e enfrentar a burocracia e a impaciência de um aeroporto quando procuro descanso; moro no campo e tudo está a minha disposição. Deixo para viajar enquanto trabalho e aproveito para conhecer lugares e gentes. Preciso disso, pois é onde encontro a riqueza e a imensidão de personagens que comporão as minhas histórias. Mas, por incrível que pareça, quando estou em casa, cercado pela natureza privilegiada presente na minha propriedade, é que consigo, através da inspiração, desenvolver as tramas e os enredos que deram a projeção que hoje gozo como escritor.

Bem cedo pela manhã já estou de pé. O sol ainda não se abriu de todo. Pela janela do quarto, afastando o cortinado, estendo a visão sobre a extensa área verde que parte da minha janela. Muito além do cercado avisto o horizonte. Os primeiros sinais do alvorecer, os raios tímidos do sol entremostrando-se no meio das nuvens, o esvoaçar de nimbos. O tom plúmbeo acentuando um movimento harmonioso de todo esse conjunto em deliciosa câmara lenta faz brotar minha verve adormecida de horas. Depois do asseio matinal aprecio o café na mais absoluta paz espiritual. Recebi o jornal ali mesmo, mas, diferente da rotina diária de abri-lo e correr suas páginas em busca de algo que afastasse o marasmo das primeiras horas, não o fiz; e nem senti esta vontade. Em vez disso contemplei a piscina. O fundo azul por baixo da água imóvel e transparente a transmitir o auge da imobilidade: dos gestos, dos pensamentos; essa lassidão abençoada.

Não me contive de vontade de espraiar o físico para não sucumbir à preguiça no começo de um dia isento de planos previamente arranjados. Andei ao longo da área verde; afundei na grama úmida e recomposta os pés semi desnudos nas sandálias de tiras. A friagem proveniente do gesto era daqueles prazeres há muito esquecidos. Continuei caminhando e alcancei uma parte da minha fazenda que raramente visitava. Minha rotina atribulada não me permitia esse tipi de passatempo. Era o pomar.

Na realidade, um mundo de árvores frutíferas carente de ser explorado. Alguns de meus empregados, ao passarem por ali, recolhiam os frutos mais acessíveis, que iam parar, com alguma frequência, à mesa das minhas refeições. O terreno era íngreme. As árvores, imensas e inumeráveis, jogavam aqui em baixo os abacates, as mangas, os jamelões, os tamarindos. Atravessei áreas arroxeadas, pisando em bagas que se esparramavam; no ar o aroma adocicado de frutas da estação.

Dentro da minha propriedade e me sentindo um intruso em terras alheias. Tal é a sensação de quem, envolto pelo trabalho, se esquece daquilo que o trabalho lhe proporcionou. Se não amasse o que faço sentir-me-ia um mero mortal dominado pelas circunstancias, um cumpridor de obrigações que fornecem o poder material de adquirir pelo simples prazer de ter sem a chance de usufruir. Isto é tudo, menos vida que tenha sentido. Então, meu espírito desejava algo, mas não atinava com o que poderia ser.

A hora do almoço se aproximando e o estômago indiferente a essas sensações triviais. Havia ali uma construção que, há anos, eu iniciara quando a fama e os assédios ainda não me haviam roubado a liberdade de ir e vir. Apaixonado pelo cultivo de plantas ornamentais tencionei, no passado, levantar aquela estufa e por em prática o estudo que concluíra a respeito do cultivo e comercialização de certas espécies famosas. Mas tudo que via agora ali, diante dos meus olhos, era o ruir de um sonho, embora em benefício de outro, não menos grandioso. O sucesso de um contrabalançou, do outro, a frustração. Ainda se via intacta, a cobertura de amianto sobre as laterais folhosas do musgo, ali acumulado há anos. No interior, o mato dominante invadindo os cantões de terra, jardineiras espedaçadas, ninhos de vespas e formigueiros acolhendo, em bando, os seus habitantes.

Desci um pedaço da encosta, afastando-me da área de árvores e ladeei a construção. Acomodei-me a um banco de pedra, feliz por este dia tão especial que escolhi para minha meditação. Tinha em mente, delineado, o enredo da próxima história, toda a ambientação. Mas como decidira que neste dia não escreveria, pus de lado aquelas ideias. Como falei no início tudo é inspiração no ambiente onde vivo e trabalho.

Um baque repentino e assustador fez-me voar os últimos pensamentos e olhar para trás. Ali terminava o teto da ex-estufa. O barulho se repetiu e eu vi rolar, para bem próximo de onde e estava, uma manga amarelinha e arredondada. Não precisei mais do que me curvar um pouco e pegá-la do chão. Não perdi tempo em saboreá-la; há muito não me proporcionava tamanho prazer. Aquela delícia aguçou a minha vontade e eu desejei mais. Antes mesmo de concluir essa ideia a mesma ação se repetiu. Repeti o gesto de devorar a fruta. Mas, ao fazê-lo outras, e mais outras e mais outras repicaram no amianto e rolaram neste, descendo até onde eu estava como a me regalar de um banquete inédito. Ao olhar para a parte da árvore que pendia sobre a construção abismei-me com a quantidade de frutos maduros que já não se aguentavam mais em seus galhos; e o destino imediato era mesmo o solo.

A uma pequena refrega do primeiro vento da tarde, elas começaram a se soltar e uma chuva de mangas se arremessou sobre a cobertura e foi assim que terminei aquelas agradáveis horas do meu dia. Lambuzando-me a valer, enquanto compreendia como é simples a felicidade.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 08/04/2013
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