Jovinha Doida
Quando o sol surgiu por trás do canavial em flor, e o vermelho-alaranjado do céu cobriu a direção da praia, o vento desenhava nas nuvens as mais exatas formas, o mesmo vento suave que deslizava em curvas no corredor natural das cercas de gaiolinha das pastagens, desde São Martinho até a Igreja da Conceição. O crepúsculo e a brisa eram muito agradáveis, mas essa harmonia era prenúncio de um dia ensolarado para a infelicidade dos cortadores de cana, que seguiam em procissão a caminho dos aceiros; enquanto a vida despertava na volta das pescarias de mijuada, nas primeiras bicicletas, na fila da padaria.
Nesse vaivém de vidas empacadas como bois em atoleiro, algum desocupado que reparasse na curva da estrada da Vala do Mato poderia distinguir, de longe, a silhueta da velha Jovinha, figura inconfundível sobre quem nada se sabia além dos limites dos gracejos, que corriam de ponta a ponta, sobre seu caráter misterioso e marginal. Curvada sob um peso enorme, caminhando com dificuldade e apoiada em uma vara de bambu, parava uma ou outra vez, o saco às costas, catando papéis e outros objetos das lixeiras que ia encontrando ao longo da estrada, num ritual lúgubre e desordenado.
Não era mais aquela que xingava ao menor gesto malcriado, tagarela e cuspideira: a tuberculose tinha-lhe secado a carne, a sujeira cada vez maior, as moscas disputando espaço nos pés cobertos de meias empoeiradas. Cega de um olho, enxergava pouco; e tinha que ficar algum tempo matutando até definir a direção da praça, para onde costumava se deslocar à espera de comida, contando sempre com a generosidade de algumas senhoras do Beco, a quem entregava uma latinha que logo voltava com algumas sobras.
Companhia desde a última moagem, a cachorrinha Zuleica ia à frente cheirando tudo e abanando a cauda. Com muito fôlego e rápida como poucos, ia cruzando a estrada e acompanhando, em disparada, as bicicletas e os carros num teimoso latido, provocando a ira dos passantes. Companhia de solidão e de infortúnio, era a única ouvinte dos gemidos e confidências de sua infeliz dona, por quem devotava grande respeito, e por quem utilizava, algumas vezes, seus dentes afiados, afastando os inimigos em sua defesa; como no instante em que a velha mal cruzara a Igreja da Penha, onde parou e fez o sinal-da-cruz, a criançada, num assédio constante, jogou-lhe pedras e bagaços de cana, colocando a triste figura na roda que se formou.
Lá evém Jovinha Doida com sua cachorrinha,
Com a bunda de fora e dizendo que é rainha.
Sem forças, girando o bambu no ar, investiu contra algumas “pestes” sem defini-los com exatidão. E, em voz baixa, lembrou-se de alguns palavrões que usava até bem pouco, na luta incessante contra um mundo que fazia caretas, fechava-lhe as portas; contra essa gente ordinária que um dia iria “apodrecer no inferno”.
- Sua mãe tá na zona!...
Respirando com dificuldade, livre do escárnio maldito da criançada, que agora se ocupava de outras façanhas, por fim quedou-se ofegante num dos bancos da praça. A essa altura as atividades rotineiras já estavam a pleno funcionamento, e a usina mais parecia uma panela de pressão, com um barulho infernal ouvido a considerável distância, lançando fuligem em todas as direções. Os estudantes passavam; e não fosse o adiantado da hora, bem que perderiam tempo em importuná-la, esses capetas.
Recostada sobre o saco de papéis, os olhos semicerrados, uma tontura insistente, pôde, apesar de tudo, perceber que estava voltada para a frente da farmácia – aquela farmácia cheia de remédios, remédios caros, pensava. Precisava tanto ficar boa, ter mais força no manejo do bambu... Essa criançada iria ver só com quantos paus se faz uma canoa. Não resistindo ao cansaço, deitou-se no banco, e assim permaneceu um bom tempo.
- Sai daí, Jovinha Doida! – O ônibus mal chegara e alguém já se incumbira de sua desgraça: pontapés de misericórdia sob um olhar de agonia e de dor, enquanto alguns operários do turno da tarde, desocupados, jogavam sinuca na venda de seu Domingos Machado. Ali o movimento era grande. Entre doses de pinga a conversa corria animada. De tempos em tempos o chão era molhado na intenção de embriagar algum santo. Também havia os que não faziam nada e ficavam à porta. Estes podiam ver, lá perto do canteiro de flores, aquela doida. E ficaram pasmados quando viram tamanha mudança nos hábitos daquela infeliz, sem paradeiro e sem parentes, que desde que aparecera se tornara tão popular na localidade.
Era lembrado o tempo em que ela, com vestido vermelho de alguma madame da usina, sapatos altos, turbante na cabeça, a sombrinha estampada, fazia a festa da gurizada; ora levantando-lhe a saia, ora correndo de suas pedradas. Ela, ousada e arrogante, desfilava como uma rainha e, faceira, fazia poses de princesa, com os aplausos da platéia.
Enquanto lançava os pontos da sinuca no pequeno quadro-negro, alguém se lembrava de que ela foi a primeira namorada de muitos rapazes, pelos canaviais afora. Amante carinhosa que contribuía para a felicidade alheia com aulas sobre coisas desconhecidas daquelas mentes cheirando a fraldas.
Também se lembravam daquele dia em que São Pedro fez desabar um aguaceiro medonho na região. Certamente foi um dia incomum: parecia noite em plena manhã. As mulheres fecharam as janelas, nervosas, rosário entre os dedos; relâmpago estourando por toda parte e fazendo cair do céu pesada tromba d’água. A estrada virou um lamaçal, e até balsas improvisadas com talos de bananeira eram feitas pelos meninos que brincavam na correnteza que se formou na frente de suas casas. O gado, preso no curral vizinho ao matadouro, fugiu para a praça, causando pânico nos aventureiros da chuva. Pois, até nesse dia Jovinha foi sucesso. Montada em um touro, entrou triunfante no quiosque para se abrigar, e de lá saiu direto para os lados do Pantaleão, convidando os rapazes com propostas maliciosas.
- Quem quer vir comigo...?
Na euforia dessas lembranças acendidas entre um cigarro e outro, não faltou sequer, na conversa, o caso das pernas de pau.
Certa vez um circo tinha chegado a Tócos*, esperado com muita expectativa, porque isso era raro na região. Haviam se passado muitos anos, desde que uma tal de Marlene fraturara a coluna caindo da corda, que nenhum outro era armado ali. O povo todo estava na rua para ver o desfile do sábado. Trapezistas, malabaristas, rumbeiras, mágicos e até elefantes passavam acompanhados pela banda da Sociedade Musical. De repente, surge o palhaço das pernas-de-pau e a multidão enlouquece. Vejam só, como se consegue equilibrar dessa maneira?! Jovinha achara lindo, gritava e aplaudia como ninguém. Era o maior feito que seus olhos já haviam visto. Então, despertou-lhe uma inveja, uma vontade de desfilar daquele jeito, ficar lá do alto dando adeus... Seria difícil? Pois, foi um desafio. Esperou que os artistas chegassem perto dos banheiros da parada de ônibus e gritou:
- Eu também faço isso!
Decorridos alguns minutos, convencidos os artistas, incentivada, e com algum treinamento com apoio do teto dos banheiros, lá estava ela: Jovinha, a Doida, de Tócos para o mundo, desfilando com pernas de pau junto à caravana do circo! A multidão delirava com esse feito memorável que jamais foi esquecido.
Houve quem comentasse sobre uma certa festa do Dia do Trabalho quando ela, seminua, invadindo o coreto e de posse de um microfone que lhe puseram nas mãos, imitou Carmen Miranda, com reprovação das senhoras que se sentiram agredidas e se retiraram para suas casas, deixando os homens à vontade para jogar flores na cantora de improviso que rebolava e ameaçava ficar nua. Sendo bem feitinha de corpo e com “tudo no devido lugar”, era um espetáculo digno das melhores boates.
E não foi a primeira vez. De outra feita, por ocasião da Festa da Penha, fez semelhante proeza, quando apareceu no balcão do leiloeiro e, embriagada, fez um discurso em louvor à padroeira.
E há quem diga, no intuito de referenciar o seu mundo de intrigas, que no tempo dos franceses andou se metendo em encrencas com os donos da usina, por ter revelado segredos sobre fatos que teria presenciado numa casinha abandonada no quintal da casa grande, onde passava as noites com permissão dos vigias.
Todas essas passagens de sua vida desregrada estão na boca do povo, nas rodas das donzelas do Beco, e acredita-se que tenha ido além das cercanias do distrito; mas tudo isso é nada comparado aos hábitos estranhos dos últimos cinco anos: desaparecer durante temporadas e ser encontrada nos mais inacessíveis lugares, como num pique-esconde.
Da última vez, quando se interrogavam sobre seu paradeiro, inconformados com a falta da atração preferida, eis que surge do porão escuro do coreto, a Jovinha, sempre jovem:
- Tá quente, tá frio...
De outra feita, quando todos atiravam em O Dólar Furado no Cine-Teatro Paraíso, no melhor da fita macaqueou pelo palco em frente à tela, provocando Dias de Ira.
E, tendo desaparecido novamente durante muito tempo, foi descoberta atrás do altar da gruta da usina:
- Sou Nossa Senhora Aparecida.
Andou pela Ilha dos Carães e até pelo cemitério de Coqueiros onde, contam, quase matou do coração Seu Nilo Coveiro que, pela manhã, fazia trabalhos de capina. Teria surgido por trás de uma sepultura e botado o homem pra correr.
Este comentário sobre o cemitério, na venda de seu Domingos, atinge o auge da graça e, já em hora do almoço, os operários vão saindo aos poucos. Lalão e outros dois da rua de João Meirinho, com piedade, vão até Jovinha e pegam a lata, voltando depois com alguma comida. Ela, no sono de dor, nem pôde perceber que Zuleica foi quem agradeceu o almoço que entornou pelo canteiro de beijos.
Não demorou muito, uma buzinada do ônibus fez com que, ainda tonta, recostasse no saco de papéis. Tudo girava na brancura dos reflexos do sol do meio-dia; e apesar do calor, sentia frio. Virando a cabeça para o lado, quis dar uma bambuada na cachorrinha, mas sua arma estava fora de alcance; e, compreendendo que não sentia fome, perdoou a amiga.
Permaneceu assim, tentando recompor a imagem da praça, na confusão de um quebra-cabeça desarrumado, até que veio o cair da tarde.
Com muito esforço, levantou-se, apanhou seu bambu e saiu cambaleante rumo à estrada de asfalto. Para trás ficaram seus trapos e o saco de papéis. Não iria mais precisar deles. O sol desapareceu nos Araújos e a noite desabou sobre a planície.
Agora a criançada, em alvoroço, já brincava de polícia-e-ladrão e procurava fugir das luzes dos postes que acendiam em resistência; ora atravessando as cercas, ora se mostrando na esperança de testar a astúcia de seus companheiros. Outros eram mais arrojados e seguiam por aceiros distantes da claridade da rua. Foi assim que perceberam um barulho estranho às margens do pântano: um quebrar de gravetos e um gemido. Espantados e mais unidos, ficaram sem saber o que dizer. Corações saltando pela boca, um medo horrível ferindo como pedra de bodoque atingiu tanto os ladrões quanto os policiais. Tremendo que nem varas verdes viram um vulto caído por trás de uma moita. Nesse momento, ouviram latidos que eram repetidos na outra margem. Assustados, os garotos saíram em desabalada carreira.
- Um fantasma! Um fantasma!
A lua branca, refletida no espelho d’água, já ia alta mergulhada nas nuvens prateadas que seguiam com destino à praia, num desfile exótico de carneirinhos como os dos santinhos de São João. Gotas de perfume caíram nas árvores e um forte cheiro de jasmim exalou pela tabua. Todas as estrelas e todos os vaga-lumes se juntaram e vieram ouvir um som distante, vindo lá do terreiro de Dona Moringa. Era uma música descontínua, um jongo, um lamento de vozes que marcavam o ritmo da dança dos canaviais cujas flechas franjavam com a viração, como o lençol com que a mãe cobre o filho, entoando uma canção de ninar.
Aos primeiros raios da manhã, a cachorrinha de olhos tristes chorava cabisbaixa em torno da moita de capim. A companheira tinha sumido. Mais uma de suas brincadeiras. Vieram os meninos com seus pais, depois de uma noite de pesadelos. Juraram sobre o que viram na noite anterior.
Desde então, nunca mais Jovinha foi vista. Sua história, hoje, é lembrada toda vez que alguma aventureira, inventando moda, resolve dar-se a alguma esquisitice:
- Parece Jovinha Doida!