O cinema, a lupa e o tempo
A vida no pacato distrito seguia com sua rotina de subsistência, onde a praça ao redor das poucas casas era refúgio de uma gente que passava o dia entre os canaviais, nas cercanias da usina ou atrás de algum balcão. Desde o gole de café aos primeiros raios da manhã à procissão de boias-frias ao cair da tarde, quase todos eram envolvidos em afazeres ligados à atividade açucareira, à exceção de alguns colegiais que estudavam em algum turno das duas escolas existentes. Mas, havia um luxo verdadeiro: na saída da praça, em frente à usina, havia o Cine-Teatro Paraíso, também conhecido como Cinema Paraíso ou Cinema de Jair, que atingira seu apogeu à custa do empenho de seu dono, que lutava para que fossem exibidas as fitas mais recentes, o que quase sempre significava um atraso de quase dois anos entre a estreia de um filme e sua exibição na localidade. Era a época de grandes produções, quando Elizabeth Taylor e Charlton Heston dominavam as bilheterias e os camponeses riam ou choravam com suas histórias, vivendo momentos de ilusão para fugir da cruel realidade: não conheciam nada além das fronteiras do distrito, nada mais do que se lhes impunha o trabalho operário; e, por isso, a fila interminável rodando a praça, ao redor de si mesmos. Um ir e vir sem nenhum futuro, um contar-moedas que não acalentava nenhum sonho, nenhuma possibilidade.
Na rua que se inicia naquela praça e segue até a praia, havia um grande quintal que abrigava porcos, galinhas e patos num cercado, por onde os meninos costumavam pular nos fins de semana para ter acesso a um terreno baldio, nos fundos da casa de um parente do dono do cinema. A curiosidade da gurizada era o depósito de lixo a céu aberto no centro do terreno, exclusivo daquela família e que continha preciosidades: pedaços cortados de películas cinematográficas que apresentavam problemas durante a semana. Os meninos sabiam se haveria ou não recortes naqueles dias, pois, todos comentavam no povoado quando o projetor parava e, sob assobios e gritos, as luzes se acendiam, para tristeza de uma plateia interrompida em suas aventuras. Tristeza de uns, alegria de outros. Pobres meninos, sem dinheiro para os bilhetes, se contentavam em ter aqueles retângulos perfurados entre seus olhos e o sol. Ávidos por cenas de filmes censurados, vasculhavam tudo e, de posse dos pedaços cortados, reuniam-se em círculos para analisar seus fotogramas. A coisa ficou melhor depois que Dodô apareceu com uma lupa.
O tempo passou, os meninos cresceram e a comunidade se comoveu com a morte trágica de Seu Jair: durante uma reforma, o teto da sala de projeção desabou, ferindo-o mortalmente. Nunca mais cinema, nem pipoca, nem balas, nem beijos roubados. Nunca mais as cortinas vermelhas se abriram. A população se dispersou com o tempo de vacas magras dos usineiros, quando vários foram à falência. Alguns peões para conseguir algum trocado, saíram da localidade, assim como alguns rapazes que foram estudar na cidade, deixando seus companheiros à margem da estrada, nas lavouras, nos botecos: alguns enlouqueceram, outros já não vivem mais, outros andam em círculo, ébrios, a vagar pela praça. Foram ficando por ali, como arautos de um reino invadido pelo asfalto que, uma vez construído, levou para bem longe os que lutavam por uma vida mais digna.
Dodô agora era Dr. Salvador, se tornara um grande empresário e vivia na capital, quando certa noite, ao assistir pela TV à cerimônia do Oscar, tomou conhecimento de um filme chamado Cinema Paradiso, que acabara de vencer na categoria de melhor filme estrangeiro. Com a semelhança do título, do nome do personagem e movido por tamanha curiosidade, correu a assisti-lo. Tomado de emoção pelo enredo e pela casualidade, foi às lágrimas, sobretudo com aquele final surpreendente. Na história, o coroinha Totó, na verdade Salvatore, passa a amar o cinema junto a um homem que projetava as fitas e que ao morrer deixa para ele todas as partes recortadas com as cenas de beijo, vetadas pelo pároco da cidade. Embora Seu Jair não lhe tivesse deixado nenhuma emenda de recortes, lembrou-se dos pedaços de películas que admirava, com sua lupa, naquele terreno baldio... quando foi alertado de que a sala estava se fechando. Voltou no dia seguinte, e no outro...
Da última vez que viu a fita, não dormiu. Um desfile interminável de cenas de filmes, que só pôde ver quando adulto e que guardava com zelo naqueles idos tempos, insistia em roubar-lhe o sono naquela noite. Na verdade não havia nada mais além de beijos, mulheres em maiôs e um ou outro casal entre lençóis... Na semana seguinte, acordou decidido a ir ao distrito. Logo na chegada, divisou os aceiros dos canaviais, lembrou-se dos amigos de infância que deixara à margem daquela estrada, quando sua tia o levou para estudar na cidade. Tão sós, tão sem-futuro; enxada e foice a ceifarem o mato, o capim, a vida. Por onde andariam seus companheiros?
Uma tristeza lhe abateu ao ver sua casa em escombros. Seus parentes haviam se mudado e já se preparava a demolição. Com muito sacrifício, percorreu o longo corredor coberto de cacos de telhas, e equilibrando-se nos entulhos, teve acesso a seu antigo quarto. Seu retrato, numa parede sem reboco e envolto em teias de aranha, revelava um aluno da quinta série, sorridente e sentado numa mesa com um globo e uma flâmula do grupo escolar. Nada além de um armário carcomido pelas goteiras e pelo tempo, ao lado de alguns arbustos que brotaram com a umidade e com raios de sol que entravam por um enorme vão no teto. Com dificuldade, conseguiu abrir suas portas e ver, cobertas de poeira e mofo, pilhas de cadernos com páginas coladas e alguns objetos de sua infância como piões, bolas de gude e figurinhas. E, dentro de um pote de vidro, encontrou o que procurava: os pedaços de fitas de cinema e a lupa que usava. Lá estavam todos os seus ídolos: Sophia Loren, Sarita Montiel, John Wayne, Richard Burton...
Salvador puxou para fora uma das pilhas de cadernos mofados, sentou-se sobre ela, colocou seus óculos e foi revendo, um a um, os fotogramas que guardara, todos ainda tão nítidos como na época em que pulava a cerca daquele terreno baldio. A lupa, as películas e um feixe de luz do sol foram testemunhas daquele momento em que um menino, que voltara no tempo, refletia sobre como alguém, que tinha o mesmo nome que ele, pudera ter chegado ao cinema em uma história tão sua.