O menino travesso
Nem me preocupei com a queda do moleque. Estava acostumado com as suas travessuras e por isso mesmo achei que se levantaria do chão e sairia correndo para aprontar uma nova. Mas foi diferente o resultado. Minha consciência doeu ao saber do desfecho de sua triste história.
Sinval era sacristão do padre Amaurílio. Aos domingos, na missa, lá estava ele bem paramentado e quieto. Exercia suas funções religiosas perfeitamente bem. Na igrejinha do vilarejo era um garoto exímio. Não me lembro de ter ido à missa dominical e não tê-lo visto ajudando ao padre.
Como criança saudável, sempre aprontava as suas. Não podia ver o alto-falante da torre da igreja evangélica começar a tocar e logo apanhava pedras e o acertava sob os aplausos e os risos dos seus coleguinhas de rua. O pastor calmamente saía do templo e, dirigindo-se a ele, pedia-lhe:
-Sinval, comporte-se. Aqui é a casa do mesmo Deus de sua igreja. Ele fica triste com tudo isso que você faz. Vá brincar. Se você quiser assistir ao culto, entre. Você e seus coleguinhas.
Ele, sacudindo a cabeça e sem querer atender ao pastor, acalmava-se um pouco e saía dali à procura do que fazer diferente do já feito. À tardinha chegava em casa suado e cansado de tanto correr.
-Por onde andava, filho?
-Lá na praça, mãe, brincando...
-Com quem, meu filho?
-Com os meninos, mãe.
-Vá tomar seu banho para depois jantar e ir dormir.
-Deixe eu sair à noite, mãezinha...
-Não! A noite é tempo para se dormir. Quando você crescer, eu deixo você sair à noite.
E a noite chegava. O menino cansado de antes, agora pensava deitado na cama. Maquinava as peripécias que aprontaria no próximo dia. Não demorava muito o sono a chegar. Adormecia feito um anjo e, às vezes, o pesadelo era a única forma de remoer as passadas gravadas no inconsciente. Gritava, sorria, chorava, tudo durante o mais profundo sono.
Sinval também tinha o seu lado meigo, belo e inocentemente feliz. Não podia ver nenhum garoto passar à sua porta com roupas velhas e rasgadas que não corresse ao seu armário, tirasse alguma das suas e a desse. Quando dona Aurora, sua mãe, dava-se por conta da falta de alguma roupa sua, gritava-lhe e às vezes até lhe batia.
Às sextas-feiras dona Aurora sempre oferecia pão e farinha de mandioca aos dez primeiros pedintes que lhe chegassem ao portão de casa. Quando as dez ofertas da promessa de sua mãe se acabavam, ele catava na dispensa o último alimento que era doado a quem nada recebera. Sob forte advertência e calado, ouvia a reclamação da mãe sobre o exagero de esmolas. Não se importava. Na outra sexta-feira não seria diferente e tudo aconteceria de novo, com ou sem os gritos da mãe.
Na escola, as notas oscilavam muito. Mês eram razoáveis, mês eram fracas. Ele não se cansava de levar bilhetinhos da diretora do colégio para sua mãe. Esta, pacientemente, vinha ao colégio, desculpava-se pelas artes que o filho aprontava e, em casa, devolvia-lhe o recado corretivo com palmadas e gritos. Nada intenso.
-Ai, mãe, tá doendo.
-Tá não, safado. Só perco a palmada que não bate no seu lombo. Isso é pra você aprender a estudar e um dia, quem sabe, ser alguém na vida.
-Ai, mãezinha, não dê mais não, pelo amorzinho de Deus, viu? Dê não, mãezinha.
Ela ouvia-o e tinha clemência. Na verdade as palmadas não eram lá essas coisas. Ele chorava por um ou dois minutos e pronto. O garoto parecia esquecer-se rápido do corretivo e em seguida voltava às travessuras de sempre.
Mas o destino lhe escreveu a vida com diferenças. Parecia avisá-lo de que devesse ser bastante traquino. Seu tempo de menino e de gente deveria durar muito pouco. Calaram-se a força da travessura e a ineficiência na escola. As missas dominicais seriam agora diferentes das de antes. Seu silêncio atravessaria a cidade deixando um vazio esquisito e inexplicável. Suas travessuras não encheriam mais o vilarejo, e o pastor perderia a esperança de conquistar para sua igreja aquela almazinha tão forte.
Soube, após quase duas horas, que aquele garoto travesso que tanto ajudava o padre nas missas aos domingos, estava morto. Suas mãe havia sido alertada pelo médico do posto de saúde de que se Sinval não tomasse seu remédio diário contra a epilepsia, fatalmente morreria. Dona Aurora sabia bem dos riscos. Havia se cansado de ir até o posto médico do município atrás do dito remédio e nunca o encontrava.
Sua situação financeira andava precaríssima. Seu marido, um desempregado da construção civil, diante do desprezo social em que vivia, afogava-se na bebida o dia todo e todos os dias. Ela, com o minguado salário que recebia como gari, tirava a metade de seus proventos e comprava uma caixa com vinte comprimidos do remédio do filho. Mas acontecia que um mês tinha alguns dias a mais e o tratamento do garoto era sempre incompleto.
Naquele justo dia, quando Sinval saltava feliz enchendo os ares da praça do coreto, foi acometido subitamente por uma de suas maiores crises e morreu. Ninguém quis acordá-lo. Alimentavam o triste tabu de que, através de sua saliva, pegava-se o mal.
Na calçada da praça, estavam ele e seu anjo da guarda, um morto para sempre e o outro preparando a viagem da alma que não precisaria de remédios para sobreviver. Eu posso lhes dizer, caros leitores, que a praça, o coreto, o vilarejo, as missas, tudo ficou entristecido com sua morte. Dentro de suas travessuras estavam imersos a força da vida e o brilho intenso de uma criança que vivia com um Deus vivíssimo dentro de si. Enquanto pulava, ensinava-nos a força da vida e, quando ajudava ao pároco, produzia as centelhas do divino. Para sua mãe, uma simples criança do mundo; paro o pároco, um aprendiz das coisas de Deus; para o pastor, uma esperança de conquista de mais uma alma; para mim, o ressonante enredo iluminado com uma porção de coisas que vi e tive quando criança, exceto o grande mal que o levou cedo à casa de Deus. Este menino viveu dentro de mim em quase tudo que fez, exceto o mal que teve.