Solidão Andarilha

Esfregou as mãos calejadas nos olhos e enxergou no pedaço de jornal que lhe cobria uma manchete do ano anterior. Piscou repetidas vezes até certificar-se de que a noite havia realmente chegado, e então jogou os braços pra trás, espreguiçando-se. Era um sujeito de olhos cansados, barba comprida e boca larga. A camisa era a mesma há alguns meses, e os chinelos eram tão gastos quanto suas poucas boas lembranças. Tinha as pernas marcadas, algumas feridas no pescoço e muitas mágoas no peito.

Eis que se encontrava ali, na calçada fria, em plena noite de inverno. A luz escassa do poste iluminava seu semblante longínquo, enquanto diversos transeuntes passavam sem nem mesmo notarem sua presença. O som de buzina que surgia da esquina o fez acordar de vez. Acenou para um companheiro que recostava-se na parede, enquanto este o fitava sorrindo.

“Boa noite, José. Servido?” - Aquele segurava um prato de comida fria de alguns dias atrás.

“Muito obrigado…Acostumei-me tanto à fome que quase não a sinto mais” - olhou para baixo e uma pequena lágrima despontou do canto de seus olhos.

O vento soprava gelado e as horas passavam devagar. Enquanto sua mão permanecia erguida na esperança de algumas moedas que lhe garantissem a refeição do dia seguinte, dezenas de pessoas gastavam suas notas em bares, restaurantes e passeios afins. “E quem se importa, afinal?” - pensou ele. Quem se importaria com suas histórias ou até mesmo com a dor que sentia? Quem seria capaz de enxergá-lo por um só minuto? Qual deles desviaria seu caminho para prestar-lhe ajuda? Ora essa! Ninguém o via ali como semelhante, apenas como uma mão solitária a erguer-se no nada.

Fatigado e já sem qualquer esperança - o que era rotina -, deitou-se novamente e pôs-se a alisar os pelos do cão que se deitava ao seu lado.

“Você é que comporta-se com humanidade. Muito mais humano que qualquer bípede que anda por esta rua” - e sorriu.

O cãozinho esfregou-se nele e, em seguida, apoiou-se sobre as patas. As pulgas que lhe devoravam eram tão ferozes quanto a fome que dominava José. Estavam ambos ali, marginalizados de todo aquele ciclo de vida tão natural aos outros, mas que em relação a eles era tão distante. Puxou o pedaço de jornal novamente e cobriu-se, apertando o cão contra o peito, dando-lhe batidinhas fraternais nas costas.

E embora a felicidade não estivesse disponível a todos, a lua encontrava-se exposta no céu, brilhante e chorosa. Aquela sim era - e sempre seria - visível tanto para uns quanto para outros, desde o mais célebre médico até o mais solitário dos andarilhos.

Dona Iaiá
Enviado por Dona Iaiá em 03/04/2013
Reeditado em 18/04/2013
Código do texto: T4221814
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