Menina da noite
Por dentro da noite, ela caminhava devagar, aparentemente sem rumo. Mas era só aparência, a garota tinha um ponto certo, no meio-fio, precisamente localizado no quilometro 122 da BR 277.
Seria uma noite comum, não fossem seus inquietos pensamentos. Enquanto caminhava, sua mente divagava sobre o certo e o errado. Chegava a ser engraçado, considerando quem ela era e o que fazia.
Sentou-se no mesmo tijolinho de sempre, posto ali não por ela, pois quando a menina foi até aquela beira de estrada pela primeira vez aquele objeto já estava lá. Talvez já estivesse há anos no mesmo lugar, talvez há tantos anos quanto os anos que aquela cidade tinha. Talvez estivesse ali desde sempre, vendo a mesma dureza de vida e comemorando por ser um tijolo, e não uma menina.
Ajeitou a sainha curta, não para que tapasse seu corpo ainda pré-adolescente, mas para expô-lo na medida certa. Um caminhão passou rápido na rodovia e quase a arrastou com sua voragem de vento. Mas a menina se recompôs depressa. Sacou o cigarro de um pequeno bolso na lateral da blusinha e o acendeu tranquilamente, para só então finalmente prestar atenção no movimento de caminhões da estrada.
Não seria uma noite movimentada, domingo, clima frio, porto congestionado. Mas certamente ela conseguiria um cliente. Ao menos um. E era só do que precisava, não era?
Não tardou e voltaram os pensamentos que faziam daquela noite uma noite diferente. Assistira um filme religioso na tv hoje a tarde, e falavam sobre o que é certo e o que não é (como a maioria dos filmes religiosos que passam na tv, dando prioridade ao que não é), e se sentiu muito mal quando o que ela fazia se encaixou na categoria das coisas erradas. Hediondas. Terríveis. Desumanas.
Era isso que achava engraçado. Ela é que era desumana!
O cigarro ameaçou queimar os dedos. Descartou-o. Pegou mais um. Onze e meia da noite.
De longe, já vislumbrou a chata da Vitória vindo em sua direção. Vitória era ainda uma criança, aquela sim era uma completa criança, tanto de corpo como de pensamento, e a menina não gostava de Vitória porque... Sinceramente nem sabia mais por que, a razão se perdeu no tempo. Não gostava e ponto.
– Me dá um cigarro? – Vitória pediu, em pé na frente dela.
– Não tenho – respondeu, tirando o cigarro da boca por um segundo e soltando fumaça azul.
– E o que é isso?
– Não tenho pra te dar.
A pirralha se irritou, mas não protestou, pois sabia que era três anos mais nova e apanharia se provocasse briga. Não podia trabalhar com a cara arrebentada. Afastou-se daquele ponto da estrada, equilibrando-se no meio-fio como uma bailarina.
Vitória chegou num bar próximo, pediu um cigarro ao velho dono do bar. Ele perguntou o que ganharia se o desse e ela beijou aquele buraco abaixo do bigode do velho, para ter a sua recompensa. O velho fez questão de acender o cigarro com um isqueiro importado que ele tinha, e depois Vitória partiu do bar. Na rua, mostrou o dedo do meio para a menina sentada sobre o tijolo, e sumiu na penumbra noturna.
A menina ainda acompanhou Vitória com os olhos, até que ela desaparecesse totalmente da vista. Sorriu ao pensar, vitória para quem?
Um pouco depois, quando já o segundo cigarro jazia no asfalto frio, um caminhão passou por ela e diminuiu a velocidade, para depois estacionar no acostamento uns metros adiante. A menina foi até lá, e a janela do carona desceu.
– Quanto é? – o gordo, velho e fedido caminhoneiro perguntou.
– Vinte – a esbelta, jovem e cheirosa menina respondeu.
– Tá meio caro, não acha não?
Ela nem se deu ao trabalho de retrucar. Aquilo não era uma negociação.
O caminhoneiro até pensou em continuar seu trajeto, dando ás costas a menina; ele bem sabia que poderia arranjar alguma outra por pelo menos metade do preço. Afinal, naquela cidade eram tantas. No entanto, aquela menina ali tinha algo único, e talvez nem fossem os olhos verdes contrastando com a pele morena ou os cabelos sedosos amarrados com um rabicó cor-de-rosa. O que ela tinha era uma beleza estranha, interna, que só deixava transparecer em parte, e ele queria conhecer ao todo.
– Entra aí.
A menina obedeceu e bateu a porta. O caminhão seguiu para o estacionamento de um posto de gasolina próximo, junto a dezenas de outros. E assim que desligou o motor, o velho e gordo tirou o cinto de segurança e inclinou o seu corpo para agarrá-la. Mas naquele instante, a menina desviou o rosto.
– O que foi?
– Antes me mostre o dinheiro.
– O quê?
– O dinheiro!
– Que é isso, pirralha, cê acha que eu não vou te pagar?
– Me mostre logo a porra do dinheiro!
O velho muito irritado abriu o porta-luvas e chacoalhou a carteira recheada na frente da cara dela.
– Tá aqui! Tá vendo? Tá vendo? – e despejou a carteira ali outra vez. – Agora vem cá...
Beijos a menina não aceitava, ele já estava deitado sobre ela com o corpo suado e ensebado, e para isso não ligava, mas quando o caminhoneiro ameaçava aproximar seus lábios dos dela, a menina desviava.
Estava quase na hora, ele em breve pediria para que ela tirasse a roupa e aí não daria certo, mas a garota titubeou bem na hora, por voltar a lembrar do filme que assistira naquela tarde. Certo e errado. Bem e Mal. Luz e Trevas.
Concluiu, depois de alguns segundos, que aquilo era um completo equivoco, não havia apenas o totalmente certo e o totalmente errado, mas também dezenas de camadas entre um e outro. E no caso dela, acima até do Bem e do Mal, havia o Sobreviver e o Morrer.
Tomou coragem. Cuidadosamente colocou o braço por trás do próprio corpo, tirando da saia a pequena faca de cozinha que ela afiada todas as tardes, antes da hora do filme na tv. E enfiou a arma pontiaguda bem no centro das costas do caminhoneiro, que se aquietou rapidinho, olhando assustadíssimo para aqueles olhos verdes da menina. A boca aberta, por onde em breve sairia sangue.
A menina o empurrou de um só assalto para que ficasse sentado em seu lugar de motorista. No principio, o velho e gordo tentou tirar a faca de seu corpo, mas suas mãos não alcançavam, e logo ele percebeu que cada vez mais se movia mais rápido aquilo lhe tirava a vida.
A menina abriu o porta-luvas e pegou a carteira recheada do caminhoneiro. Levando-a consigo. Quando ela abriu a porta do carona para ir embora dali, o homem ainda tentou alcança-la mais uma vez, o que só complicou a sua situação, fazendo com que ficasse estirado na dianteira do caminhão, com a cabeça para fora.
Demorou mais de uma hora para que ele finalmente morresse, mas a menina não sabia, pois em nenhum momento pensou em retroceder ou se permitir qualquer resquício de piedade.
Muito longe de lá, ela entrou em um terreno baldio recheado de uma grama alta. Seguiu segura até o fundo do lugar, onde uma tábua no chão escondia um buraco feito anos antes por ela mesma. A garota tirou a tábua dali e pegou a caixa de sapatos do buraco. Dentro dela, maços e maços de dinheiro, que a garota dividia pelo valor das cédulas.
Tirou tudo da carteira do caminhoneiro, pôs a maior parte naquela caixa, e o restante ela levou para casa, pois seria o bastante para que ela não precisasse trabalhar o resto da semana.
Repôs a caixa de sapatos no lugar, já julgando que com aquele dinheiro ela podia fugir, podia arranjar um lugar muito bom longe de lá, voltar para escola talvez, arranjar um emprego e quiçá (por que não?) um namoradinho. Mas depois julgou que seria melhor esperar mais um pouco, pelo menos até seus irmãos e irmãs terem idade o suficiente para aguentar viver com a sua mãe.
Na rua, a caminho de casa, viu Vitória saindo de outro caminhão, ajeitando a roupinha e seguindo para o ponto, onde esperaria o segundo cliente que certamente viria, já que ela ainda era novinha.
E a menina, vendo que vitória sentou no seu tijolinho, não foi até lá protestar. Em vez disso, descartou de vez a ideia de que o que ela fazia era errado, hediondo, terrível, desumano.
Até podia ser, mas sinceramente, quem naquela beira de estrada tinha o direito de atirar-lhe a primeira pedra?
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Um dado: Paranaguá é uma das cidades brasileiras com o maior índice de prostituição infantil, devido ao porto local entre outras razoes.
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Esse não é um conto. É um alerta.