A Mancha

Olhou em volta. O restaurante não era dos mais finos, nem dos melhores – apenas um restaurante qualquer. Ela precisava apenas jantar e, para este único fim, aquele lugar estava de bom tamanho.

O ambiente era demasiadamente escuro. Cadeiras e mesas obsoletas, toalhas floridas - bastante gastas, devo acrescentar -, lâmpadas fracas. As velas ajudavam a tornar o restaurante mais iluminado, embora o fizessem ficar um tanto quanto abafado também. A fumaça que as chamas soltavam no ar surtiam certo tom nebuloso. Nebuloso? Sim. Fechou os olhos e esfregou as mãos no couro cabeludo. Enxaqueca.

Ela trajava vestido vermelho de algodão, na altura dos joelhos. Os cachos castanhos presos ao topo da cabeça, com alguns fios soltos na testa. Escorriam tristes por seu rosto magro. Quase não passara maquiagem. As unhas, marrons, palpitavam sobre a toalha velha da mesa. Sapatos baixos, pretos, reluzentes. Os olhos – se não me engano – apresentavam certa vermelhidão. Chorara bastante, e agora os coçava freneticamente.

Era de se esperar que ele saísse de casa daquela forma. Ou não? O fato é que ela já não aguentaria mais. Era sempre o mesmo: os mesmos atrasos, as mesmas desculpas, os mesmos olhares falsos, o mesmo desdém, o mesmo esquecimento. Maldito. Maldito esquecimento. Já não era o mesmo de quando se casaram. Perdera totalmente de vista o cavalheiro apaixonado com quem tivera dois filhos. Tornara-se um crápula. Nos últimos meses, tudo o que podia enxergar ao seu lado, na cama, era um grosseiro. Um homem cuja boca não beijava mais, há dias. Um monstro cujas mãos não conheciam mais o toque. Um desconhecido, cujos pensamentos eram imprevisíveis e nebulosos. Nebulosos? Sim. Havia fumaça das velas no lugar, as quais queimavam incessantemente. Ardiam.

E o charuto que o maldito fumava todos os dias? Queimava os móveis, enchia a casa daquele cheiro insuportável. Charuto desgraçado.

Seu prato veio, finalmente. Sopa de feijão. Poderia ser melhor, é claro. Mas era o suficiente para aquela noite. Ele a abandonara na manhã daquele dia. Quando acordou, tateou com as mãos o resto da cama e deparou-se com um vazio. Os lençóis revirados. Não havia ninguém ali. Apenas um bilhete medíocre num papel velho. Dizia adeus - uma concubina. Ela sabia. Ela sempre soube. Chorou sozinha e em silêncio. Agora estava ali com aquele feijão batido na sua frente. Estupidamente batido.

Olhou em volta mais uma vez. A enxaqueca piorara. Olhou profundamente cada um dos que se sentavam nas outras mesas. “Parecem felizes”, pensou. Parecia-lhe que o mundo movia-se devagar. Devagar demais, por sinal. Os gestos daquelas pessoas eram deveras graciosos, sorrisos satisfeitos. Até que enxergou uma mancha. Sim, uma mancha. Uma mancha vermelha no paletó de um dos senhores que se sentavam à mesa à frente.

Fitou a mancha com certa ferocidade. Pareceu-lhe, de repente, que a mancha tornara vermelho todo o restaurante. Olhou para seu prato e o feijão pareceu transbordar, revirar-se no prato. Tomou o espelho da bolsa nas mãos e viu que seus olhos estavam cada vez mais irritados, tomados de vermelhidão. Queimavam. O fogo das velas transformou-se num vermelho vivo. Vermelho total. Tudo era de cor vermelha.

Enterrou suas unhas na mesa de madeira enquanto mirava a mancha. Coçava os braços - quase que numa crise alérgica - até marcá-los com riscos profundos. E quanto mais aquele homem imbecil se mexia, mais parecia não notá-la em seu paletó. Arrepiaram-se os pelos. O nervoso tomou conta de seu corpo. Ela transpirava, suava frio. Tremiam-lhe as mãos. A mulher sentiu nojo, um nojo profundo. Tinha náuseas fortes, que brotavam de seu estômago e subiam por seu esôfago. Os olhos encheram-se de lágrimas e pânico.

Afastou o prato de sua frente e engoliu seco. A mancha vermelha tomaria conta de todo o restaurante. A mancha entraria em seus olhos e a deixaria cega. Nojo. Sentia nojo.

Num ato de repulsa, desviou o olhar do paletó. Fitou-lhe os dentes. Os dentes daquele homem mostravam-se absurdamente amarelos, fétidos. Mordiam o ar. Mastigavam suas entranhas... Nojo.

Desesperadamente, agarrou a bolsa e abandonou o lugar. Corria. Abandonou ali também a sopa de feijão.

O homem fumava charuto.

Dona Iaiá
Enviado por Dona Iaiá em 31/03/2013
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