O BARBADO: história para acordar

     No topo da serra mora um barbado. Esse letárgico pajé das matas mora também, no imaginário infante, da pequena Enila.
     A casa de Enila fica ao pé da serra num vale de secura e árvores ressequidas pelo sol causticante.
     À tarde, na beirada da noite, o lume vapor paira no horizonte. Enila, distraída em seu mundo mágico, esquece da hora. E, mais que depressa, a mãe zelosa a adverte:

       - “Entre menina, tá na hora de banhar pra jantar!”

     Lá fora, com seus amiguinhos imaginários, junto ao quintal de chão batido fica a menina por alguns minutos a espiar desconfiada e temerosa a serra à sua frente. E de repente, a mãe volta valente. Enila corre e dribla o chicote de fedegoso, que de gozo nada possui, a não ser para quem bate. O chicote zune em seus ouvidos e ela corre como gazela.
     E algum tempo depois, banho banhado, jantar jantado, só resta o sono sonhado. Mas o sono não vem porque a mãe conta história do barbado.
     Bem assim...
     “Atrás daquela serra minha filha, mora um bicho peludo, barba longa e olhar esquisito. O nome dele é Barbado. Tem um ronco assustador (e imita) e fica a espreita, espiando criança malcriada que, se não dormir cedo, é apanhada. Ele desce a Serra, puxa o pé da meninada que ainda estiver acordada. Então durma pro Barbado não te pegar...”
E saía do quarto num passo qualquer.

     Enila, fingindo dormir, tentava enganar o barbado. Cobria-se com o lençol até a cabeça e ficava esperando o bicho roncar. Sem mais tardar ele se anuncia num ronco estridente que varava o silêncio da madrugada fresca de cerrado. E a menina, de olhos semicerrados, tenta espantar o medo e dormir, mas não consegue.
     A menina insiste e o barbado também.
Quem vencerá quem? Ninguém, pois a menina cansada do medo, dorme, e o barbado cansado de roncar, cessa seu ronco matreiro.

    
Enila dorme e sonha o pesadelo. Lá está ele, o bichão. Cheio de pelo e escuridão. Ao ver o bicho peludo de tão perto o medo cabeludo a invade. Ela assusta, acorda e corre para cama de seus pais. Lá, no quentinho gostoso, dorme aconchegada nos braços dos pais. Era assim quase toda noite. E a mãe, contadora de histórias, percebe o sofrer da menina e muda esta prosa. Agora, são histórias de reinos, príncipes e princesas e a menina reina, outrora...
O tempo acelera.
O cerrado empalidece.
Enila cresce.
Precisa ir à escola.
Todos vão embora daquelas terras sem instrução rumo a cidade em busca de diplomação.

     No dia da partida Enila, no colo do pai, sacolejante, olha para trás e vê a poeira da estrada, a casa, o quintal e a serra. E bem no topo vê o barbado acenando para ela. Era a despedida!
     Enila não sentia mais medo, só saudade. E chorou. Um choro contido, escondido para a mãe não bradar. Ficou um pedaço de infância, cravado ao pé daquela serra e em sua lembrança de criança.

     Na cidade, Enila se encanta. Tudo diferente... Outras gentes... Supermercados cheios de novidades.
     A nova casa, a rua, a escola, novos amigos... Tudo novo e atraente. E se diverte. Mas, no dormir do sol, à noite a adverte: -
     -E o barbado? Onde estará?
     E, durante seu reinar, a menina fica a espera do ronco de seu bichinho... Sempre... Ele traz a memória da menina de outrora.

     E assim a vida vai. Entre uma brincadeira e outra, um dia entra e o outro sai.
     Numa noite perdida-achada no calendário do tempo, de repente, um ronco. Enila levanta e vai à janela. Será se o amigo veio fazê-la uma visita? Espia e espera e... Qual nada! Era ronco de motor de carro em disparada. Ela volta para a cama e tenta dormir. O sono não vem. Precisava ouvir aquele som, aquela conhecida voz. Àquele acalanto! Então emite som mudo e saudoso e só assim consegue sonhar, depois dormir ao imitar o ronco do - agora amigo - Barbado.
    
     Assim ela relaxa e sonha com a infância na roça: casa pequenina de chão batido, quintal largo, florido, alta serra e seu amigo. Noite comprida e curta.
     Dia amanhecendo e a menina-moça acordando... Dentro de si outros roncos, outros brados, outras histórias e babados.
Iracemas! Uma perda, duas penas!


     Ainda hoje, Enila mora na cidade e ronca. Um ronco de defesa para afugentar as dores que a persegue. E o Barbado, no alto da serra, também ronca. Um ronco de defesa para afugentar outro barbado: o homem, que o persegue.
     E assim os dois, sonhando e fugindo, seguem...
 
Suerdes Viana
Enviado por Suerdes Viana em 31/03/2013
Reeditado em 16/07/2013
Código do texto: T4216133
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