Meninos de rua: pela madrugada
Já passava da meia-noite. Alguns meninos ainda se movimentavam pelo Recife, errando de canto a outro da cidade. A névoa do inverno encobria a maré, deixando um frio preguiçoso no ar. Nas folhas dos manguezais escorria um doce orvalho para dentro do rio, ajudando a maré cheia. As pontes que cortam a cidade descreviam a serenidade daquela noite.
O Recife, verticalmente abriga o povo sem teto nas calçadas. Centenas de marquises funcionam como guarda-chuva. A tempestade começava a lavar calçadas e ruas. Alguns pequeninos aproveitavam para brincar debaixo das bicas, de onde escorriam águas e detritos dos prédios. Imaginavam-se embaixo de uma grande cachoeira, pelas matas do imenso interior de Pernambuco. As trocas de bicas eram constantes, procurando aquelas com maior força das águas. Faziam isso na maior algazarra, bem ao estilo dos meninos. Outros arriscavam os grossos pingos da chuva para correrem pelas ruas e avenidas, quebrando a monotonia da noite fria.
Ensopados, com suas enormes camisas, corriam alegres, numa brincadeira de esconde-esconde na penumbra da noite. Era melhor correr para não congelar na brisa refrescante do inverno. O céu cinzento escondia as estrelas lá no alto, protegidas da úmida e terna madrugada. Não sabiam elas que cá embaixo nossas crianças aprontavam todas as travessuras, soltando a felicidade escondida do dia.
Poucos carros rodavam àquela altura da madruga. O vento soprava forte por entre grandes prédios e casarios do Recife. Zumbia velozmente por sobre as árvores e postes, arrastando consigo uma lâmina d’água que se dissipava mais adiante no meio da cidade.
Os rostos magros dos meninos de rua deixavam escorrer aquela água fria e deliciosa, enquanto subiam e desciam das laterais das pontes. A de gaiola, uma das mais famosas da cidade, entrelaçada nos lados por barras de ferro em forma de xis, facilitava a escalada dos meninos ao se exibirem para suas meninas. Escorregavam macios pelo ferro centenário da ponte, entremeados pelo doce orvalho deixado pelo fim da chuva.
Exaustos e felizes, agora se despediam da tempestade que se foi, deixando molhados corações escorrendo de alegria. Coisa bem íntima dessa vida faceira e inimaginável que acontece a cada inverno, numa relação concreta entre a natureza e o fruto de sua criação, no barulho e no silêncio da noite.