A Odisseia de Silvia

_Acorde filho. Está na hora de lavar esse rostinho, escovar os dentes, tomar café e ir para a escola.

_Mas mãe, eu ainda tou com sono. Me deixa, por favorzinho, dormi só mais um pouquinho.

_Filho, vamos lá, acorde. Eu preparei um ótimo café da manhã. O meu filhão precisa estudar para ser um médico que lá no futuro vai curar muitas pessoas, e ter uma casa bonita, uma esposa bonita, e que depois vai ajudar a mamãe já velhinha.

Davi olha para sua mãe, e com o rosto ainda meio sonolento, sorri para ela e responde:

_ Tá legal mãe. Eu vou.

_Eu sabia. Agora vamos logo antes que você se atrase. Te adoro filhão.

_Eu também mãe.

Silvia é uma mulher guerreira. O marido a largou depois de um ano e meio de casada, deixando só com a casa, o filho, e contas a pagar. Ela trabalha de manhã e tarde como faxineira de uma biblioteca pública. O filho, cujo nome é Davi, tem dez anos de idade, e basicamente cuida da casa durante o período da tarde. Faz suas lições escolares, assiste um pouco de TV, e gosta de ouvir as outras crianças do bairro brincado de futebol na rua. Sua mãe sempre chega por volta das seis da tarde com um sacola de pães, prepara o café para ambos, manteiga no pão com um pouco de presunto, e pergunta posteriormente, quando estão à mesa comendo, como foi o dia de Davi. Davi sempre tem algo novo a falar, e Silvia fica espantada com a imaginação e a inteligência de seu filho. As pernas, braços, coluna dela doem demais. Todo o seu corpo está tão dolorido e cansado, mas mesmo assim ela vai averiguar as lições escolares de seu filho, lava os pratos, e roupas que estão sujos do dia anterior e do mesmo dia, prepara a janta que quase sempre é a mesma toda noite: ovos, macarrão, um pouco de arroz, e um pouco de suco quando o dinheiro permite. Depois ela liga a tv, e mãe e filho ficam assistindo qualquer programação que acham interessante ou que há para se ver. Ele dorme no colo dela, e com os braços exaustos de tanto trabalhar ela leva-o para o quarto, deita-o na cama, cobre-o com um lençol que já foi remendado umas seis vezes, e ajoelhada perto da cama de seu filho, ela reza o Pai-Nosso com os olhos marejados, e intercede a Deus por todas as mães e filhos que passam pelas mesmas ou piores aflições e odisseias que ambos vivenciam cotidianamente.

_Filho, acorde depressa, você está atrasado.

_ Mãe, que horas são?

_ Hora de se levantar, e de ir à escola.

_ Mãe, você tá bem? Parece muito cansada e triste.

Silvia olha com mais precisão o rosto de seu filho, aqueles olhos tão cheios de curiosidade e de afeto, aquele coração tão humano e divino que não conseguia odiar o pai que havia ido embora sem dizer absolutamente nada, e que nunca reclamava das situações que os dois tinham que viver e suportar todos os dias.

_ Estou bem meu filho. É só impressão sua. Seu café já tá pronto. Vai lá, tome banho, arrume-se imediatamente para ir à escola._ solicitou a mãe ternamente.

Davi percebeu algo estranho na voz de sua mãe. Era suave e exausta simultaneamente, mas naquele instante parecia uma voz tão doce, porém disfarçada com um peso em seu corpo que ela parecia não suportar mais, como se esse peso estivesse evaporando e esmiuçando todas as suas energias, todos os ossos de seu corpo. Davi comeu seu pão amanteigado com uma xícara de café, misturado com um pouco de leite; beijou a mãe que enxugou num relance bem rápido um filete de lágrima de seu olho esquerdo, pegou sua bolsa e foi para a escola.

Silvia não foi trabalhar naquele dia. Resolveu arrumar a casa. Enquanto lavava o banheiro, jogando detergente no piso, sua mente recordou suas melhores amigas pulando corda depois das cinco horas da tarde. Não havia nenhuma estrela no céu, mas elas já apontavam as constelações usando a imaginação, e as estrelas eram tão faiscantes e cheias de mistérios; e cada nuvem que passava lá longe no céu era transformada em alguma figura, em algum animal, em algum desenho que elas tinham visto na TV ou em algum livro. Às vezes a chuva desabava de repente, e elas corriam pela rua, rindo, empurravam-se, e acumulavam as gotas da chuva entre as palmas da mão e depois jogavam a pequena água acumulada nos rostos delas mesmas; os meninos no outro lado da calçada jogavam barquinhos feito com isopor nos pequenos córregos que se formavam na rua, enquanto elas procuravam uma casa que houvesse uma biqueira mais forte, e ficavam lá embaixo, todas molhadas, pulando, e cantavam músicas que haviam memorizado na escola e nas rádios, e embora soubessem que apanhariam de suas mães quando chegassem em casa ensopadas, tudo ali valia a pena, tudo ali transbordava felicidade, alegria, magia, era uma comunhão tão sagrada com a vida e com as pequenas coisas que nenhuma guerra ou crise no mundo roubava o fogo daquela paixão em se sentirem unidas e vivas, e nada mais perturbava o éden da inocência que pulsava em seus corações. Silvia olhava sua vida hoje, limpando aquele banheiro, tendo que arrumar sua casa, e cuidar de seu filho que tanto amava, e o prisma que refletia toda a sua vida até aquele instante ofuscava tudo o que ela poderia ter sido, tudo o que ela poderia ter vivido, encontrado, tudo o que ela poderia ter sentido, mas não havia mais espaço em sua alma para lamentações e arrependimentos. Em sua alma só havia o amor por seu filho, mas o peso que ela carregava desde que tinha cinco anos de idade cada vez mais se tornava insuportável, irrespirável, e não havia ninguém no mundo que suspeitava o que havia dentro de seu ser, embora todo o seu corpo e toda a sua vida indicavam sintomas visíveis de sua incomensurável exaustão e tristeza.

Havia a mesa e as cadeiras empoeiradas para serem limpas, e enquanto o pano em sua mão, que havia sido mergulhado num óleo de limpeza, era passado com leveza e força nas superfícies dos poucos móveis da casa, sua alma estava tão cheia de vazios, tão cheia de excessos, tão cheia de secas e de solos áridos que mais nenhum tipo de plantas conseguia brotar e nascer, nem que esse feto fosse um ruído de luz, um ruído que pudesse mostrá-la que ainda existem compaixão e beleza neste mundo, como se tudo dentro dela fosse um grande universo infértil que desejasse ardentemente se convencer que se pode fazer germinar alguma espécie de vida em si. Sim, era verdade, ela amava a única coisa, coisa não, ela amava o único ser que conseguiu, em toda a sua existência fatigada, brotar vida e alegria neste mundo: seu filho Davi de nove anos. Silvia abriu a geladeira: havia alguns ovos, manteiga, pedaços de carne, alguns legumes, vinagre, comida que sobrou do dia anterior, garrafas de água, meio litro de refrigerante, e gelo, cubos de gelo, e seus olhos já não conseguiam chorar lágrima alguma, e seus olhos estavam exaustos de permanecer abertos, assim como seu corpo estava cansado de dormir todas as noites. Mas ela adorava ficar às vezes com seu filho até às dez da noite, lendo histórias infantis, e observando as admirações e curiosidades dele sobre aquelas histórias, e sempre ele perguntava: “mamãe, por que todos esses personagens dessas histórias acabam sempre felizes?”, e ela respondia que por mais que a vida fosse árdua e cheia de vales tortuosos, no final quem busca o bem colherá o bem. Silvia sempre dizia isso, mas em seu íntimo ela já duvidava dessa afirmação há muito tempo, mas era seu dever proteger seu filho amado, nem que para isso ela necessitasse mentir e se sacrificar. “Finais Felizes só ocorrem em ficções?” Silvia queria acreditar que não.

Algo dentro dela ainda tinha fé que toda a sua pobreza e luta, tanto externa quanto interna, seriam superadas, seriam recompensadas, poderiam ser revertidas se ela nunca desistisse de si e nem de seus sonhos, mas o chão que ela acabara de varrer, as teias de aranha que ela acabara de retirar com a vassoura, as panelas e pratos que terminara de lavar e enxugar a poucos minutos, parecia que tudo naquela casa, tudo no mundo parecia sempre tentar nos dizer que estamos destinados a sermos incompletos, por mais que você limpe, varra, lute, tente, pense, ande, corra, eduque, leia, construa, edifique, pavimente, sempre haverá nas mesmas coisas e fatos e pessoas conjuntos de “algos” que nunca conhecem nem à beira de uma plenitude, nem à beira de uma mera simplicidade inteira. Até o incerto já não estar tão certo de sua incerteza. Silvia tropeçou sem querer no sapato de seu filho: havia um pequeno buraco na sola do sapato. Sempre há buracos dentro de nós que por mais que tentemos jogar cimento, cal, tijolos, ideias, amores, nada consegue tapar esses buracos que crescem a cada dia dentro de nós_ por mais que neguemos, por mais possamos reprimir ou racionalizar, os buracos da alma são necessários, pois são como feridas que ainda sangram a dor de que estamos vivos, de que ainda existimos, e de que algo pode mudar em nossas vidas.

Silvia seguia a rotina e lavava algumas roupas, o amaciante estava em cima da pia com a tampa aberta, e quando suas mãos seguraram as roupas de seu filho Davi, seu coração sentiu uma punhalada tão forte, mais tão forte que ela caiu de joelhos ao chão. Ela chorava, chorava, mas não entendia claramente o que estava havendo em sua alma, por que ela sentia todas aquelas coisas. Silvia cheirou a blusa de seu filhinho, e recordou do nascimento dele, de quanto teve que trabalhar quando ele ainda era um embrião, das vezes que chegava em casa tão cansada, e não havia sequer uma voz familiar para conversar sobre qualquer assunto, ou um alguém que lhe fizesse um jantar e lhe dissesse que a amava.

O odor da blusa de Davi encheu os olhos de Silvia com uma ternura tão arrebatadora, que ela se sentiu tão suja, tão pecadora, como se ela almoçasse e jantasse pecados todos os dias, e seu oxigênio fosse mais pecados e impiedades, como se ela não merece o perdão de nada: nem de Deus, nem de seu filho, e nem de si mesma. Silvia tentou se erguer do chão, mas não conseguiu, como se um grilhão a prendesse ao piso de sua casa, como se amarras invisíveis estivessem por todo o seu corpo, e mesmo tentando suplicar uma prece a Deus, nenhuma palavra conseguia escapar de sua boca. “Mamãe, vou nunca vai me deixar, não é?”, perguntou Davi no natal do ano passado. Deixá-lo? Silvia achava que todos já haviam a deixado nas poeiras do passado, como também ela sentiu que seu mundo interno já havia deixado-a, fazia muitos anos. O que fazer para voltar a si, para encontrar a si mesma?

Silvia queria poder se abraçar, abraçar seu próprio coração, mas tudo dentro dela parecia tão longínquo, tão inacessível. Até que seus dedos tocaram nas costas dos erros que ela havia cometido e que a seguiam até naquele instante, e ao sentir todos os seus erros nas pontas de seus dedos, uma nuvem se quebrou em quatro partes do céu de sua alma, e ela sentiu que o mundo, a vida, e os seus próprios erros lhe perdoavam por tudo o que ela sofrera e fizera. Silvia sentiu forças para se levantar do chão, ficou em pé, e ao olhar para a sua humilde casa e as fotos de seu filho na parede da sala, seus olhos compreenderam enfim todos os sofrimentos e renúncias que ela teve que vivenciar em sua vida. Uma chama pequenina de esperança e de fé gotejou no abismo de sua alma, e Silvia não se sentia mais sozinha, por mais isolada e ilhada onde pudesse estar, ela já não estava mais só. Ela estava sempre com seu filho e consigo mesma.

Era preciso fazer um almoço diferente para Davi, um almoço especial para os dois. Silvia foi até um pequeno supermercado de sua casa, comprou alguns tipos de molho, queijo, verduras, meio quilo de bife, algumas batatas e maçãs, e voltou às pressas para casa. Preparou a carne misturando com um pouco de molho e alguns temperos que ainda estavam guardados na despensa, levou-o ao fogão; depois fez um delicioso purê de batata, e uma salada de verduras para servir como sobremesa, tudo precisava sair perfeito, afinal seu filho merecia. Limpou a sujeira e as migalhas que haviam caído na mesa, em seu avental, e no chão da cozinha, sentou-se em uma cadeira e ficou a observar atentamente todo aquele simples manjar que fizera, lá no forno, esperando o tempo certo para retirá-lo de lá. Mas a vida não era uma mera receita que você segue e prepara os ingredientes, mistura os elementos, usa algumas dicas que se aprende com alguém mais experiente na arte da culinária para se saciar inteiramente na vida. A vida nunca se sacia, e por mais que nossas almas estejam obesas ou com bulimias devido a excessos de informações, amigos, deveres, responsabilidades, liberdades, amores, desejos, e ainda que todos os oceanos e rios do mundo, unificados e diluídos em nosso ser, seriam capazes de aplacar a sede insaciável que nos constitui, que nos forma, que nos cerca, que sempre anda pedindo algo novo ou diferente dentro de nós, como se toda novidade ou diferença não fossem repetições embutidas que todos os séculos passados e suas populações também almejaram e cultivaram. Aquela cozinha, e toda aquela casa, conhecia melhor a própria Silvia do que a si mesma.

_ Mamãe, cheguei. Mas que cheiro bom é esse mãe?

Silvia levantou-se da cadeira, correu para perto da porta onde estava seu filho e o abraçou, abraçou como nunca havia abraçado-o antes.

_ Você tá bem mãe?

_ Claro filho. É que você é lindo demais Davi. Venha, guarde suas coisas da escola em seu quarto, e vamos almoçar.

_ Por que você está aqui nessa hora mãe? Sou eu geralmente que preparo o meu almoço que você deixa no fogão antes de sair para trabalhar.

_ O chefe me deu folga hoje filho, e deixe de perguntas, vamos almoçar, porque a comida ainda está quente e tá maravilhosa.

Davi sorriu, contudo seu coração percebeu que havia algo errado diante de tudo aquilo. Ainda assim, foi ao seu quarto, guardou seus sapatos, bolsa, tirou o uniforme escolar, tomou banho, trocou de roupa e foi almoçar junto com sua mãe. Terminado o almoço em que os dois comiam, contaram algumas piadas, Silvia propôs ao seu filho:

_ Vamos agora visitar a vovó?

_ A vovó! Mas a gente só visitou a vovó umas duas vezes até hoje mãe.

_ Poxa filho, sua vó merece uma visita do único e mais lindo neto dela, você não acha?

Davi saltou da cadeira, remexendo os braços, girando ao redor pequena da mesa da cozinha, entusiasmado com a notícia de que iria visitar a sua avó.

_ Tá bom filho. Desse jeito você vai acabar ficando zonzo. Agora vá se trocar, vista uma roupa bem bonita, e fique bem arrumado pra vovó.

_ Já vou mãe. Num instante eu me arrumo.

Silvia ficou a olhar imovelmente o seu filho, aquele menino já crescido que ontem mesmo cabia entre seus braços, e agora lá estava ele, correndo cheio de expectativas para o seu quarto. Ela lavou a louça, os talheres, depositou o resto de comida junto com o lixo que havia em três cestos espalhados devidamente na casa, levou tudo para fora e jogou na lixeira da rua. “O lixo na lixeira, pensou Silvia. O mundo na lixeira. O mundo é uma lixeira com toda espécie de baratas e insetos e dejetos se devorando por restos de comida, por restos de atenção, mentindo e matando por fatias de afeto, por fatias de ganância e poder, por pedaços de distrações. DIS-TR-AÇÃO. Sempre se distrair: se entreter com as responsabilidades trabalhistas; se entreter nas seriedades em ser um bom pai e uma boa mãe que saibam educar seus filhos e gerenciar a família; se distrair em cumprir com honestidade e ética a leis constitucionais e religiosas; se entreter com as resoluções financeiras a se quitar a cada hora, a cada dia, a cada mês, e que nos roubam tanto o sono; se distrair com uma nova dieta para diminuir a obesidade gordurosa de nossa tristeza, de nossa solidão, e de nossa fome em ser feliz. Sempre buscar se entreter com a ausência de algo para amar, ou de excessos de pessoas ou coisas para amar, sempre buscar alguma coisa para se fazer, nunca permitir que o vácuo choque ovos de agonia em nossos cérebros, pois até em se escolher “nenhuma das alternativas anteriores” é preciso optar e circular tal item, tal alternativa. ALTERNATIVA... ALTER+NATIVA: outro país, outro cativeiro, outro povo, outra nação, outro universo para se existir e se viver. Pudesse eu ratificar com toda a absoluta inexorabilidade legal e cósmica o absenteísmo divino a toda e qualquer ação, ato, ambiente, inércia, sensação, crença e existência. Tudo isento de qualquer justificação, reprovação, consequências e efeitos. TUDO. Mas a vida é um descomunal espelho quebrado em trilhões de pedaços onde nossas faces tateiam às cegas uma alma que nos soe familiar, que nos comunique algo próximo, algo que nos indique alguma direção certa e precisa, algo que não pareça tão distante e incompreensível, assim como todas as coisas e seres são e estão_ enraizados na mais cinzenta e enevoada deriva.

_Mãe...

Silvia permanece absorta em si mesma, perto da porta de entrada da casa.

_ Mãe, a gente já pode ir pra casa da vovó!?

_ Claro... O que você perguntou mesmo meu filho?

_ A casa da vovó, a gente pode ir agora?

_ Filho, por que você está tão arrumado?

Davi não entendeu direito o que a mãe lhe disse. Ele olhava para sua mãe, e parecia que ela estivesse dormindo, como se ela estivesse dormindo e conversando para ninguém ao mesmo tempo. Às vezes ele sentia que sua mãe parecia estar em outro lugar, em outra época, sendo uma outra pessoa.

_ Vamos agora Davi. Já tá ficando tarde, e não quero deixar sua avó esperando muito tempo. Você sabe o quanto ela é ansiosa.

Davi balançou a cabeça concordando, mas sem entender direito o que estava ocorrendo com a sua mãe. Estaria ela doente, ou seria cansaço demais, ou apenas um mero lapso de memória... Poderiam ser tantas coisas. Eles pegaram um ônibus, e depois de uma hora e quinze no trânsito, finalmente chegaram a casa de Virginia, a avó de Davi. Tocaram campainha. Nenhum sinal. Tocaram de novo, e passos meio que arrastados chegaram aos ouvidos dos dois ali fora. O som de uma chave entrando na fechadura, o rangido da porta sendo aberta lentamente. (“Pudesse eu, monologou Silvia, abrir tudo o que não me deixa escapar de mim mesma, girar a chave de minha vida e sentir uma única vez a mão do sol acariciar meu rosto frio e endurecido, ser não mais essa mulher batizada de Silvia, ser uma outra pessoa, ser todas as pessoas em um único corpo, e depois quebrar meu corpo, escapar deste corpo tão frágil e incompleto, e me condensar em toda matéria do universo; Deus, por que eu fico a pensar em tantas besteiras e ilusões? Mas quem entre nós também não tem os seus sonhos loucos, e querer ser pelo menos uma vez na vida um Dom Quixote, ser algo que se possa colocar na palma na mão?!! E depois uma porta pudesse nascer dentro de mim a fim de que eu possa me destrancar de quem sou, do que sinto e não consigo fazer, e um beija-flor voasse perto de vagalumes em minha alma, e eu pudesse sentar sozinha comigo mesma perto da lareira de todos os meus sentimentos que ainda não consigo compreender inteiramente. Sou tola, mas se não formos tolos várias vezes na vida, morreríamos sufocados de tanta tensão, seriedade e preocupações. Amo tanto o meu filho, mas não consigo entender de que fonte vem de dentro de mim e alimenta as fornalhas desse amor que sinto demais por ele, quando ao mesmo tempo eu nutro certo desprezo para comigo mesma. Meu Deus, quem eu sou eu mesma, porque acho que estou enlouquecendo!?”).

_ Boa tarde dona Virginia.

Virginia olhou, atônita, aqueles dois em frente a sua porta, como se ela tivesse acabado de chegar do supermercado e ao entrar em sua residência, se deparasse com dois assaltantes roubando as coisas de sua casa.

_ Oi Silvia.

_ Tá lembrada a senhora de seu netinho, o Davi?

_ Davi, que Davi? Só ouvi falar de um Davi, e ele foi um rei hipócrita de Israel segundo me recordo bem da bíblia.

_ Davi, o filho de seu filho que há tanto tempo nos deixou.

Virginia examinou com cuidado o garoto. Percebeu várias semelhanças entre seu filho e Davi.

_ Sim, Davi, meu netinho. Desculpa. Minha memória falha demais meu filho. A vovó nunca esqueceu você. Mas, vamos, entrem, vamos comer alguma coisa.

_Na verdade _responde uma voz ansiosa Silvia_ na verdade Virginia, eu preciso ir... Eu tenho um compromisso sério, e gostaria que se não for pedir demais, você poderia cuidar do Davi só esta tarde pra mim?

_Bem, que pressa é essa; mas já que você tem algo sério a tratar, pode ir, vou cuidar muito bem do meu netinho. Fique a vontade Silvia, faça o que tenha pra fazer.

Davi arregalou os olhos com o que a sua mãe dissera, afinal ele queria tanto aproveitar aquele momento, aquele raro momento em que eles pudessem agir como uma família que se ama, tem desentendimentos como qualquer outra, mas que busca superá-los, e se tornar mais forte e unida. Davi se lembrou do que uma vez perguntara a sua mãe sobre “o porquê dos finais felizes só existirem nos contos de fada”. Davi sentia que tudo ali estava errado, e que sua mãe não estava nada bem.

_ Não mãe, eu queria ir com a senhora. Outro dia a gente pode ficar na casa da vovó.

_Não filho. O que preciso fazer é coisa de adulto. Crianças lá não são permitidas. Fique aqui, assista tv com a sua vó, pergunte sobre como foi a infância de seu pai, tente conhecer melhor a sua vó, tá bem meu amor?!

Davi sabia que quando ela decidia algo, nada podia detê-la. Então o melhor seria ceder.

_ Tá bom mãe. Mas promete, a senhora me promete que vem logo me buscar?

Silvia teve que conter as lágrimas que queriam desaguar de sua alma por meio de seus olhos.

_ Eu juro meu filho, em nome de Deus, a mamãe volta logo pra te buscar. Eu te amo muito._ indagou Silvia, abraçando-o bem forte depois.

_ Fique em paz Silvia. Ele está em boas mãos. Pode ir.

_ Obrigada Virginia. _ retrucou Silvia, entregando-lhe sem que o seu filho visse um envelope na mão esquerda da senhora idosa, e lhe sussurrou para abri-lo no dia seguinte, somente no dia seguinte.

_Tenham uma ótima tarde vocês dois. Se divirtam, e não se preocupem comigo. Estou bem._ finalizou Silvia, saindo da casa sem nem mesmo olhar para trás, para o rosto de seu filho que acompanhou o corpo da mãe em movimento até que a porta da casa fosse fechada por sua avó.

Silvia localizou um ponto onde o ônibus parava. Demorou cerca de uns dezessete minutos, até que chegou seu ônibus que a deixaria ao lado da praia onde ela costumava ir quando criança com sua mãe. O céu estava com nuvens pesadas e cinzas, o que indicava que poderia cair uma chuva daquelas a qualquer instante, mas Silvia queria ir até aquela praia, e contemplar o mar, pois sentia uma necessidade incontrolável de banhar seus pés na orla da praia. Da janela pequena do ônibus onde estava sentada, sozinha, num banco gasto e um pouco rasgado, observava sem curiosidade algumas pessoas, as ações, os acontecimentos cotidianos: mendigos sentados nas calçadas gemendo por alguns trocados a quem passava perto dali; camelôs gritando as ofertas de seus produtos novos e pirateados; adolescentes com uniformes escolares a esperar o ônibus em que os levariam para os seus respectivos colégios; duas mulheres bem vestidas acabaram de sair de uma loja bem ampla de calçados, levando consigo mesmas sacolas cheias de compras e notas fiscais; quatro jovens perto do parque central levantaram-se do banco de onde estavam sentados, fizeram um círculo para diminuir a visão das pessoas sobre o isqueiro velho acendendo um cachimbo com pedras de crack tão rotineiras; homens de paletó saiam das grandes empresas onde trabalhavam, falando em seus celulares sobre possivelmente algum negócio importante, ou outro assunto sério qualquer, enquanto erguiam o outro braço que solicitava a parada de algum táxi; vitrines e mais vitrines, caminhões e mais caminhões com inscrições e logotipos que representam seus empregadores e empresas, levando carne, móveis, brinquedos, eletrodomésticos, eletrônicos, blusas, tudo bem fresquinho com suas etiquetas certinhas, com seus rótulos, com seus manuais de instrução (a vida precisava ser catalogada e computada para não haver confusão e histerias), e as sirenes de duas viaturas policiais ultrapassando o ônibus onde Silvia estava sentada, e ela analisava todos esses cultos e missas homéricas de saber como se comprar, de saber como se deve andar, de saber a hora certa de acender e apagar o cachimbo e as lâmpadas, de saber o momento ideal de derramar suas lágrimas, de saber aonde levar suas viaturas, carros e caminhões, de saber que ônibus nos levará a escola, ao trabalho, ao retorno ao lar, ao destino incerto em que a morte não é mais o fim e nem o começo de nada.

O ônibus para perto da praia. Silvia desceu as pressas, como se o mar e a areia pudessem fugir para outro continente de sua presença eólica. Atravessou a rua enquanto o trânsito estava lento, tirou os sapatos dos pés e os segurou na mão esquerda, e sentiu a textura ainda quente da areia da praia. Ela fechou os olhos, inerte, enquanto a água do mar beijava docemente seus pés a cada intervalo das ondas, e ela sentia que aquelas pequenas ondas, vindo e voltando, pareciam com as mãos do próprio Jesus Cristo lavando os pés dela com a sua inocência e sabedoria, como se a última ceia fosse destinada e celebrada somente para ela, e Silvia sussurrou: “Pai, afaste de mim este cálice de pesares e ódios, esse cálice de traições e condenações, este cálice misturado com as sombras do meu passado”. Silvia chorou, chorou como nunca antes havia chorado, não sabia bem os porquês, como se seu coração acabasse de ter nascido do útero da existência; caiu ao chão, deixando a água apaziguar por um breve instante as feridas de seu corpo.

Havia poucas pessoas nas praias, e nenhuma delas atentou para o corpo caído de Silvia na areia daquela praia, afinal ela poderia ter sofrido um AVC, ou qualquer outra calamidade ou enfermidade poderia ter subitamente derrubado seu corpo. Contudo Silvia não se sentia morta, não se sentia cansada, pelo contrário, sentia-se mais viva do que a própria vida, como se aquele mar fosse o sangue imaculado de Cristo expurgando-a de tudo o que havia sofrido e do que fizera aos outros sofrer. Silvia levantou-se, e num giro óptico de cento e oitenta graus, ela enxergava tudo e a todos, sendo que tudo possuía agora uma outra forma, um outro contorno, uma cor diferente, um odor novo e intrigante, como se seus olhos nunca tivessem sido abertos e vissem a realidade subjetiva das coisas pela primeira vez, ou como se a vida finalmente resolvesse sair de seu sarcófago, e se desmumificando aos poucos, revelasse todos os vermes, ossos, decomposições e belezas de seu corpo original para Silvia, e ao visualizar com minuciosidade ao mar, ela confessou-se a si mesma: “Vós, ó mares e oceanos, testemunhas silenciosas das vicissitudes desse mundo, dos tempos, dos entes; vós, que sois sem saberdes que algo és; ou que tendo acumulado com tal fartura e abundância a sabedoria e os segredos desta vida durante centenas de milênios, e que até hoje a humanidade jamais tocou em um único fio de cabelo do conhecimento, e por isso mesmo vós escolheste nada falar, nada ensinar, nada absolutizar, e esquecendo-se de vossas pérolas conquistadas, vós fizestes um pacto irrevogável com o silêncio, e aqui estais diante de mim, calmos e simultaneamente indomáveis; silenciosos e tão cheios de alaridos divinos; e transformaram a vossa sabedoria em formas tão distintas e insólitas de vidas em vossos corpos e profundezas. E eu, que nada gero, a não ser palavras e lamentos; eu, que nada descobri, a não ser que tudo dorme e vive no mais íntimo do oculto; eu, que nada sou e tenho, embora eu pense saber e ter algo em mente; eu, que não lavo as mãos depois de apertar a descarga da privada; eu, que sinto uma dor tão implacável nos meus olhos, juntas e vísceras ao ver pessoas doentes, caídas ao chão, mendigando, drogando-se, e somente EU abro a minha bolsa a fim de verificar se minha carteira, documentos e maquiagem continuam lá; eu, que respeito às leis por pura covardia, e empresto o meu amor a tudo o que o meu coração toca, mas não alcança; eu, que aprendi a cozinhar tão bem graças a minha falecida mãe a qual nunca disse o quanto ela era valiosa e importante pra mim; eu, que rasguei os scripts que o Destino me fadou sobre minha vida_ as falas, as pausas, hora de entrar e hora de sair, intervalos, feições e gestos faciais e corporais que eu deveria externar, e os momentos em que eu devia exalar aqueles precisos sentimentos, aquelas exatas frases e discussões aparentemente inteligentes e pavoneadas, aquelas quedas e vacilos que eu deveria incorporar naquelas respectivas cenas de minha vida, sempre de acordo com as especificações de um autor, de um diretor, de um produtor, de uma divindade; eu Silvia, que amo acima de tudo ao meu filho Davi, sendo que fui, ou melhor, acho que fui uma ótima mãe ao aprender a ser uma péssima filha; eu, que na comunhão de todos os vácuos que escrevem narrativas imaginativas e vãs nas tábuas de meu coração, sentiu em todo o meu corpo as lágrimas ainda quentes de ternura e de amor derramadas pelo meu Deus que nunca chamei de Pai, que nunca vi-lo como um Pai, que nunca o tratei como um Pai fiel e ausente merece ser tratado; eu, que devolvi os bilhetes que a vida e a morte gratuitamente me deram para assistir aos seus filmes e espetáculos circenses; eu Silvia, tão egoisticamente eu, que depositei num envelope toda a documentação legalizada para que meu filho amado seja criado pela sua avó Virginia, os quais ambos não sabem nada e certamente formularão juízos morais sobre minha sanidade, medo e índole dúbia; eu, que nada e a ninguém julgo, mas a nada aprovo; eu Silvia, tão patética com minhas convicções e reclamações, aqui, à beira deste mar, enquanto uma enxurrada desce do céu, e todos os poucos que estavam por aqui se evadiram; eu, completamente sozinha neste momento e neste local onde não sei o que são e nem onde estão; a ti ó oceano e mar, os quais não afundaram nem um centésimo do que vive ancorado, nadando e flutuando nas correntezas abismais de minha alma; eu Silvia caminho até o mais longínquo de tuas profundezas ó mares e oceanos, pois mais densas, pesadas, artificiais, cavernosas e infinitas são as minhas entranhas do que tudo o que há, ou que imagino que não há. Sei que ouviste, ó oceanos e mares, palavras e discursos muito mais bem elaborados, racionais, prolixos, e ridículos como são os meus também, e por desprezar tanto a Vida e a Morte, por desprezar tanto ao Todo quanto ao Nada, em teus braços ò “Silvia” eu rendo completamente este meu corpo e este meu ser_ tão hipnóticos e degradantes, tão grotescos e belos, tão óbvios e indeterminados, tão nominativos e abstratos. Recebei ó Silvia a efemeridade eterna desta minha alma inócua e repleta de espinhos venenosos, pois tu Silvia, somente tu és capaz de compreender, saber, digerir e vomitar tudo o que não vive tão intensamente em mim. Perdoai minha fraqueza meu filho Davi, mas cada um nós chegamos e partimos como órfãos eternos que somos_ sempre a buscar um leito para descansar, um olhar que nos acolha, uma ideia que nos mude, uma cápsula com serotoninas, uma fé, uma resposta, uma nova dúvida, um amor diferente, um casa, qualquer coisa que nos faça sentir protegidos ou menos inseguros, que nos dê sensações de que estamos realmente em algum tipo de lar, ou que estamos no meio passageiro de rituais de processos e aprendizagens, não importa o que eu venha a discorrer meu filho, meu filhinho tão lindo e meigo, eu lhe desejo que sejas mais forte do eu, embora força e fraqueza sejam também estágios interpretativos da subjetividade humana”.

Silvia caminhava pacificamente mais fundo ao mar, até que seu corpo desaparecera inteiramente naquele vasto horizonte marítimo. O corpo de Silvia não fora encontrado, embora buscas foram realizadas pelas autoridades locais durante vários dias, porém como certa vez ela me disse: “não há nada para ser encontrado na vida, porque tudo segue fluindo e vazando espontaneamente no capuz hermético do Oculto”. Não entendi nada naquela época. Décadas se passaram.

Fui ao trabalho no dia seguinte. Era uma segunda-feira de Abril. Contudo a brisa de uma lembrança de um rosto de uma antiga mulher afagou algumas folhas de minha memória, olhei para trás e para frente e nada vi, mas era a lembrança quase que apagada de uma mulher que pensei muito ter amado, de uma mulher que pensei ter existido, de uma mulher guerreira que eu costumava chamar de “mãe”.

Gilliard Alves Rodrigues

Acaraú, 27 de Março de 2013.

(Três semanas passei, lutei, sonhei, e chorei ao trabalhar neste conto)

Gilliard Alves
Enviado por Gilliard Alves em 27/03/2013
Reeditado em 08/04/2019
Código do texto: T4210499
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