Anabell
Estava chovendo e o dia estava escuro e triste, não havia ninguém na rua; não aquela hora, mais cedo muitas pessoas passaram apressadas com suas galochas, capas de chuva, e enormes guarda-chuvas, mas agora não havia ninguém, só a menina olhando pela janela, parecia triste, pálida e doente, mas combinava admiravelmente com a fachada do prédio, desbotada, rachada e maltratada, ambas pareciam estar ali a séculos, presenciando tudo de mal que já havia acontecido naquela rua, cidade, país, mundo.
Continuava olhando, mas parecia não ver, parecia estar mergulhada em seus sinistros pensamentos.
- Anabell, o que você está fazendo parada aí até agora, eu preciso do meu remédio.
Disse uma voz velha, rançosa e bolorenta. Sua dona era quase tão velha e bolorenta, estava deitada em uma cama pobre mas limpa, com cobertores puídos e remendados, a velha não era realmente doente, mas desde que arrumara essa órfã para cuidar, se sentia no direito de ser mimada, paparicada e servida como uma inválida.
Para pagar todo o trabalho que dava cuidar de uma criatura regeitada pela sociedade, nada mais justo do que pôr essa criatura para trabalhar árduamente pelo sustento das duas e ainda ser servida nas poucas horas de folga da sua filha adotiva. Bem que Gertrude tinha razão, nada melhor para uma velha senhora que adotar essas criaturinhas que iriam ficar jogadas mesmo e po-lás para trabalhar a seu serviço, nada mais barato e gratificante que essa escravidão. Enquanto pensava nisso, via Anabell ir pacientemente até a mesinha e pegar um comprimido, dar a volta no quarto e pegar água de uma garrafa velha , trazer e colocar ao lado da cama, e como um cordeirinho perguntar se ela queria mais alguma coisa.
- Claro que sim, está na hora do meu banho e trate de fazer algo decente para a janta, já estou casada de comer arroz com caldo de fubá, vê se vai comprar um pouco de carne e batatas, mas não gaste muito.
- Sim senhora.
Era tudo que Anabell dizia, com uma espressão de cançasso, infelicidade e desprezo.
Anabell foi preparar o banho da velha e depois colocou só um agasalho que já lhe pertencia á uns bons cinco anos, e saiu para comprar comida para a velha, pois sabia que lhe era proibido tocar na carne e se sobrasse poderia até provar as batatas, mas antes isso que passar fome. Era muito infeliz na casa da velha, mas pelo menos tinha onde dormir e o que comer, embora sentisse muito frio o tempo todo e não comesse algo decente á seculos, pelo menos não tinha que mendigar nem dormir na rua.
Saiu do prédio e logo sentiu a chuva penetrar o agasalho fino e molhar todo o seu corpo, o frio aumentou consideravelmente, fazendo-a tremer, mas pos-se a andar o mais rápido que podia, a velha detestava ficar sozinha. Entrou em uma rua que tinha vários mercados, açougues e todo tipo de lojas que sujavam as calçadas e deixavam um cheiro de comida estragada e lixo espalhado pelo ar, entrou no mercado mais miserável que encontrou, tinha que polpar o seu dinheiro, e ver se conseguia guardar algumas moedas, só assim teria alguns centavos seus mesmos, já que a velha pegava cada centavo do seu salário, o jeito era economizar nas despesas e guardar o dinheiro que sobrava.
Escolheu algumas batatas mirradas e pediu algumas centenas de gramas de carne de terceira, pagou e por sorte conseguiu guardar algumas moedas, emrrolou com cuidado as compras para que não molhassem e saiu de novo para chuva, que aumentou e estava caindo em grandes gotas geladas. Atravessou lentamente a rua; a única hora de paz e sossego, e relativa felicidade era o tempo longe da velha e daquele apartamento horrível, detestava tanto a velha como a casa, tudo lá era terrível e mal, mas não podia demorar muito longe da casa, a velha com certeza já estaria de mal humor, e quando isso acontecia era pior do que sempre.
Tratou de se apressar e logo chegou na porta do prédio, subiu as escadas sujas e escuras e entrou a tempo de escutar um acesso de raiva da velha, que já reclamava da demora da menina, que não sabia fazer nada direito, que era lerda e ainda por cima feia, ela sempre ouvia isso, sempre, já até tinha se conformado com essas coisas.
Cuidou de fazer a janta o melhor que pode, e com muito cuidado para a velha não perceber, pegou um pedacinho de carne e pos no meio do mingau de arroz e fubá que era a sua comida diária. Levou a comida da velha, que reclamou que era pouco, que estava temperado demais e foi comer na cozinha.
Enquanto comia pensava se um dia ia se livrar da velha, se um dia ia ter um lar, se um dia seu pai ia se lembrar que ela existia e ia procura-lá; com certeza não, desde que sua mãe morrera que seu pai não largou a garrafa de bebida nem um segundo, e nem se importou mais com seus filhos, ela não era a única, tinha mais duas irmãs e um irmão, todos mais velhos, seu irmão estava preso em uma instituição para menores, sua irmã mais velha tinha três filhos e morava num barraco com o companheiro bebâdo, e a outra irmã, bem, era prostituta, e já a tinha convidado para cair nessa vida, no que ela recusou e disse que preferia morrer de fome, bem, em comparação com os irmãos até que sua vida era boa. Parou de pensar nessas coisas ruins e foi ver se a velha queria mais alguma coisa, ajeitou a velha para dormir e foi arrumar a cozinha.
Lavar panelas e pratos era o que ela mais detestava fazer, mas a velha tinha um prazer mórbido em faze-lá arrumar a cozinha sempre antes de dormir, não podia nunca deixar para arrumar na manhã seguinte, mas era até melhor assim, sendo que levantava muito cedo e já tinha que arrumar a casa toda, preparar o desjejum da velha e ainda ir trabalhar.
Trabalhava em uma fábrica de calçados, ganhava muito mal e trabalhava muito, um serviço entediante, com companheiras entediantes e horárario também entediante, mas como já tinha pensado antes, era bem melhor do que viver na rua, ou se prostituir.
Assim que acabou de lavar a última panela, foi ver se a velha já tinha adormecido, e como sempre percebeu que ela dormia a sono solto, já a algumas horas.
Pegou o casaco molhado mesmo e bem devagar, para não acordar a velha, ela saiu de casa, fechou a porta e desceu até o portão, que aquela hora estava fechado, mas ela sabia um truque para abri-lo, e sem dificuldade saiu para a rua, que estava gelada, mas não chovia mais, o céu estava estrelado e limpo, e o ar era úmido e estremamente frio, mas Anabell gostava, se sentia bem no frio, detestava o calor sufocante que fazia e a deixava mole e sem forças para nada, o verão era a pior estação para Anabell.
Assim que ficou longe do prédio ela respirou aliviada, ela não relaxava até estar a uma distancia segura da velha, o que era possível só nas suas caminhadas noturnas, o que ela começou a fazer assim que descobriu como abrir o portão principal, todos os dias ela ia até bem longe e voltava, só para parecer livre por algum tempo. Foi ao seu lugar favorito, o cais da cidade, onde ela ia ver o movimento dos barcos, principalmente os pesqueiros noturnos, e onde podia caminhar a vontade parcialmente encoberta pela escuridão.
Parou em um lugar onde os turistas iam para pescar, uma plataforma de madeira que entrava mar adentro, foi até o fim da plataforma, sentou na beirada e ficou olhando as ondas revoltas, a chuva tinha agitado as ondas, que chegavam a lamber seus sapatos. Estava pensativa, mais do que sempre, dali a exatamente uma semana ela iria completar 17 anos, e no horizonte de sua vida não havia nada, nada que ela pudesse esperar, nada com que se preocupar alem do fato de talvez chegar aos 50 anos ainda na casa da velha e isso era um pensamento insuportável, como tudo na sua vida.
Um barulho interrompeu seus pensamentos, entrou em sua mente trazendo lembranças boas da infância, era uma gaita, uma musica suave tocada por alguém inesperiente mas tocada com o coração, esses sons faziam Anabell lembrar de sua mãe, que gostava tanto de música, qualquer que fosse. Era uma mulher sonhadora e frágil, não aguentou a vida dura e sem distrações. Bem, pensou Anabell, chega de lembranças, está na hora de ir embora.
Levantou, arrumou a roupa e foi voltando pela plataforma de madeira, viu que no começo da plataforma estava o autor daquele som que lhe trousse boas lembranças, a medida que foi chegando perto pode ver com mais clareza a pessoa que tocava a gaita, era um homem, ou melhor, um rapaz, não deveria ter mais de 18 anos, era alto, mas não muito e de aparencia sadia, quase robusta, estava pobremente vestido, assim como Anabell, e tinha os cabelos encaracolados e levemente longos e sempre com o aspecto bagunçado, ele parecia bem á vontade naquele lugar, como se o visitasse com frequencia, ou trabalhasse lá.
Anabell passou por ele e deu um sorriso, como a agradecer pela inesperada distração na noite fria e triste, ele retribuiu com um lindo sorriso que a encantou. Foi embora pensando em como devia ser a vida de pessoas comuns que podiam fazer o que bem entendessem, como aquele rapaz que tocava sua gaita tão livremente, tinha ele comprado aquele instrumento com o dinheiro ganho pelas longas horas de trabalho ou tinha sido herdada de algum antepassado, ou talvez ele tivesse simplesmente achado em algum canto ou mesmo pedido emprestado ou até roubado, isso era uma das coisas que ela gostava de fazer, inventar histórias para pessoas que via na rua, que não conhecia e que talvez nunca viesse a conhecer, inventava passado, modo de vida, grandes paixões e até um futuro provavel.
Pensando nessas coisas foi que Anabell entrou em casa, viu se a velha dormia bem e foi trocar de roupa e deitar na caminha estreita e fria que ela ocupava na cozinha, assim que deitou a cabeça no travesseiro adormeceu profundamente de pura exaustão fisica e moral, foi um longo dia.
Amanheceu, o dia estava quente e abafado, totalmente o oposto do dia anterior, mas naquela cidade era assim mesmo, o clima era algo que nunca se podia prever, Anabell foi desperta por um despertador bem antigo e estridente, parecia que ela mal tinha fechado os olhos, ela nunca conseguia descansar o suficiente, sua vontade era dormir por três dias seguidos, mas isso só se ela fosse para um hospital ou coisa parecida.
Levantou e foi tomar um banho gelado, era a única coisa que a despertava completamente, foi fazer café, fraco e sem açucar, que ela odiava, mas era isso ou água, e ela não era peixe pra gostar de água no café da manhã, comeu umas torradas velhas e foi preparar o desjejum da velha que sempre consistia em um prato de mingau de aveia com o pouco de leite que comprava diariamente, leite esse dissolvido em muita água, que parecia quase transparente, deixou o prato e os remédios da velha no criado mudo e foi para o trabalho, deviam ser umas 6 horas da manhã, e isso queria dizer que ela tinha meia hora para chegar no trabalho, foi andando devagar, aspirando o ar ainda puro áquela hora da manhã, chegou na fábrica 6:15, e como era seu costume ficou a passear pela pequena praça que ficava bem em frente à fábrica, foi direto para um canteiro com as rosas, e logo viu o que procurava, um lindo botão quase a se abrir numa cor exótica, cor de abóbora, ou salmão bem escuro, não sabia definir bem aquela cor, só sabia que era a sua preferida, ficou a contemplá-la até que soaram os apitos de entrada da fábrica.
Entrou na fábrica grande e feia, junto com um bando de mulheres tagarelas e mal cuidadas, que só falavam de filhos, amantes, roupas e o preço dos alimentos que tinha subido denovo, Anabell tinha tres amigas na fábrica, todas mais ou menos na sua faixa etária, duas tinham 17 e uma tinha 19, ela era a menorzinha do grupo, e só se encontravam no refeitório, isso porque para a infelicidade de Anabell as quatro trabalhavam em setores diferentes, quase nunca se encontrando.
A manhã passou lenta e cansativa e quando soou o apito para o almoço todos ficaram felizes, Anabell pegou sua bandeja e se serviu da sopa sem gosto e de procedencia duvidosa que era servida diáriamente para as trabalhadoras que não tinham como voltar para casa para o almoço ou que não tivessem o que comer em casa, o que era o caso de Anabell. Sentou na mesa do canto e logo vieram suas amigas para sentrem junto dela, e começaram um animado bate papo sobre suas peripécias, Aline disse que na noite passada tinha namorado muito, como todas as noites, Luana tinha lido um livro de romance e Giovana tinha cuidado de seu irmão caçula para sua madrasta sair com seu pai. Anabell disse o que tinha feito na noite anterior e comentou sobre o rapaz e a gaita, ao que todas ficaram animadas porque nunca tinham ouvido Anabell falar de um rapaz antes.
O almoço acabou e todas voltaram a seus setores, o resto do dia passou lento, quente e abafado, Anabell fez o que sempre fazia enquanto colava as solas de mum sapato vagabundo, sonhava em como queria que fosse sua vida, morando com sua mãe em uma casa bem bonita, não precisava ser grande, mas tinha que ser aconchegante e feliz, seu irmão e suas irmãs todos juntos e felizes, ela estudando, trabalhando em algum escritório ou consultório bem sussedidos, que pagassem bem e o trabalho não fosse pesado demais, e também quem sabe um namorado, alguem que gostasse dela, alguem que ela pudesse amar.
Enquanto devaneava a hora passava, e logo deu a sonhada hora do fim do expediente, mas para Anabell só começava mais uma jornada de trabalho, lavar, passar, varrer e cozinhar, mas, mais tarde ela poderia ir ao cais e quem sabe encontrasse o tocador de gaita... Quem sabe.