a boneca

ela vinha pela calçada, 1.80 de altura, quase toda pernas, fina, ondulante, sensual. Lia-se na cara o fim lucrativo de tantas curvas e tantas cores. Brilhava, cheia de si, não olhava para nada, menos ainda p baixo onde os estonteados deribavam olhares e saliva à sua passagem. Os saltos ecoavam, sua imagem nas vitrines confundia-se com as manequins plásticas, igulamente elegantes, igualmente à venda. O telefone toca, ela pára diante de uma loja qualquer. Um homem aproxima interessado, picado de desejo, olha-a interrogativamente, sorri com os olhos, tenta sua atenção. Ela atende o telefone afetadamente, sorri muito, fala sussurando, combina preço e hora, discreta, enquanto examina o pretendente presencial e suas possibilidades. É muito prática, muito perseverante, precisa existir - a vida é um monstro que a tenta devorar desde sua puberdade exuberante. Desliga, olha-o muito direta, não sorri. Ele abala, mas não recua. Iniciam uma paródia de conquista, cheia de sorrisos falsos e clichês. Por dentro ela suspira - por fora sorri e ondula, toda olhares, toda ousadia, ciente de seu valor. Tem medo. Às vezes chora, porque está sempre sozinha e a vida passa rápido, mais rápido para ela que para qualquer outra. De repente, logo ante a consumação do negócio, o materialismo dele cedendo a lubricidade, o tempo pára e ela deita o olhar, que atravessa direto o vidro espelhado pelo sol da vitrine. Ele olha, não entende - aceitava já o preço - ela então ali ausente, vaga, como se diminuisse e se delineasse de uma forma inteiramente nova. Ele voltou os olhos para o foco do olhar dela e viu - uma boneca azul, cabelos longos, vestido de rendas, sentada numa mesinha de pau rosa, cházinho em porcelana de fantasia. Era uma loja de antiguidades, a boneca anunciava uma seção especial - brinquedos antigos em exposição. Ela ficou ali parada e embevecida, ele presenciando sem entender o milagre - seios, pernas, curvas que se alongavam, cabelos repicados e brilhantes ondulando em tranças patéticas, os saltos desaparedendo sob pezinhos brancos, tornozelos finos, joelhos sem encanto, peito reto, pescoço nu e fino, queixinho levando, uma linha reta e rosea para a boca, maças pálidas, e os olhos - toda ela ali, criança de novo, como quando ignorava a vida e seus sabores amargos. Ela nunca possuira nada semelhante àquela boneca, mas desejara - sim, como toda criança pobre deseja e se embevesse deliciosa e obstinadamente no desejo, a ponto de valorizar mais e imensamente esse desejo do que a própria posse dele, quando a vida já o permite, mas com enzinabrado gosto. O homem sentia o coração estranho no peito, comovido e confuso. Ela não sabia, ali toda criança e não entendia e nem percebia. E nem mesmo queria saber ou entender então. Olhava. A boneca brilhava na vitrine.

gil g
Enviado por gil g em 23/03/2013
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